Ativista política espanhola; mantém o blog ester vivas.
Katte Kollwitz "Deutschlands Kinder hungern!" (1924) |
Vivemos em um mundo de abundância. Hoje se produz comida para 12 bilhões de pessoas, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), quando no planeta habitam 7 bilhões. Comida, existe. Então, por quê uma de cada sete pessoas no mundo passa fome?
A emergência alimentar que afeta mais de 10 milhões de pessoas no Chifre da África voltou a trazer à tona a fatalidade de uma catástrofe que não tem nada de natural. Secas, indundações, conflitos bélicos, contribuem para agudizar uma situação de extrema vulnerabilidade alimentar. Mas não são os únicos fatores que a explicam.
A situação de fome no Chifre da África não é novidade. A Somália vive uma situação de insegurança alimentar há 20 anos. E, periodicamente, os meios de comunicação estremecem os nossos confortáveis sofás e nos lembram do impacto dramático da fome no mundo. Em 1984, quase um milhão de pessoas mortas na Etiópia; em 1992, 300 mil somalis morreram por causa da fome; em 2005, quase cinco milhões de pessoas à beira da morte no Malawi, apenas por citar alguns casos.
A fome não é uma fatalidade inevitável que afeta determinados países. As causas da fome são políticas. Quem controla os recursos naturais (terra, água, sementes) que permitem a produção de comida? A quem beneficiam as políticas agrícolas e alimentares? Hoje, os alimentos se tornaram uma mercadoria e sua função principal, nos alimentar, ficou em segundo plano.
A seca é apontada, com a consequente perda de colheitas e gado, como um dos principais detonantes da fome no Chifre da África. Mas como se explica que países como os Estados Unidos ou a Austrália, que sofrem periodicamente com secas severas, não enfrentam situações de fome extrema? Evidentemente, os fenômenos meteorológicos podem agravar os problemas alimentares, mas não bastam para explicar as causas da fome. Com relação à produção de alimentos, o controle dos recursos naturais é chave para entender quem e para quê se produz.
Em muitos países do Chifre da África, o acesso à terra é um bem escasso. A compra em massa de solo fértil por parte de investidores estrangeiros (agroindústria, governos, fundos especulativos...) provocou a expulsão de milhares de camponeses de suas terras, diminuindo a capacidade destes países para se autoabastecer. Assim, enquanto o Programa Mundial de Alimentos tenta dar comida a milhões de refugiados no Sudão, paradoxalmente, governos estrangeiros (Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Coreia... ) compram terras para produzir e exportar alimentos para suas populações.
Também é preciso lembrar que a Somália, apesar das secas recorrentes, foi um país autossuficiente na produção de alimentos até o final dos anos 70. A sua soberania alimentar foi saqueada nas décadas posteriores. A partir dos anos 80, as políticas impostas pelo Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para que o país pagasse a dívida com o Clube de Paris, forçaram a aplicação de um conjunto de medidas de ajuste. Com relação à agricultura, estas implicaram uma política de liberalização comercial e abertura dos mercados, permitindo a entrada em massa de produtos subvencionados, como o arroz e o trigo, de multinacionais agroindustriais norte-americanas e europeias, que começaram a vender seus produtos abaixo do preço de custo, fazendo competição desleal com os produtores locais. As desvalorizações periódicas da moeda somali geraram também o aumento do preço dos insumos e o fomento de uma política de monocultivos para a exportação forçou, paulatinamente, o abandono do campo. Histórias parecidas aconteceram não apenas nos países da África, mas também na América Latina e Ásia.
O aumento do preço dos cereais básicos é outro dos elementos apontados como detonantes da fome no Chifre da África. Na Somália, o preço do milho e do sorgo vermelho aumentou 106% e 180% respectivamente em apenas um ano. Na Etiópia, o custo do trigo subiu 85% com relação ao ano anterior. E no Quênia, o milho chegou a um valor 55% superior ao de 2010. Um aumento que tornou estes alimentos inacessíveis. Mas quais são as razões da escalada dos preços? Vários indícios apontam para a especulação financeira sobre as matérias-primas alimentares como uma das causas principais.
O preço dos alimentos é determinado na Bolsa de Valores, das quais a mais importante à nível mundial é a de Chicago, enquanto que na Europa, os alimentos são comercializados nas Bolsas de Futuros de Londres, Paris, Amsterdã e Frankfurt. Mas, hoje em dia, a maior parte da compra e venda destas mercadorias não corresponde a trocas comerciais reais. Calcula-se que, nas palavras de Mike Masters, do Hedge Fund Masters Capital Management, 75% do investimento financeiro no setor agrícola é de caráter especulativo. Matérias-primas são compradas e vendidas com o objetivo de especular e fazer negócio, repercutindo em um aumento do preço da comida para o consumidor final. Os mesmos bancos, fundos de alto risco, companhias de seguro, que causaram a crise das hipotecas, são os que hoje especulam sobre a comida, se aproveitando de alguns mercados globais profundamente desregulados e altamente rentáveis.
A crise alimentar à escala global e a fome no Chifre da África são o resultado da globalização alimentar a serviço de interesses privados. A cadeia de produção, distribuição e consumo de alimentos está nas mãos de umas poucas multinacionais que antepõem seus interesses particulares às necessidade coletivas, e que ao longo das últimas décadas deterioraram, com o apoio das instituições financeiras internacionais, a capacidade dos Estados do sul de decidir sobre suas políticas agrícolas e alimentares.
Voltando ao começo, porque existe fome em um mundo de abundância? A produção de alimentos se multiplicou por três desde os anos 70, enquanto que a população mundial apenas duplicou desde então. Não enfrentamos um problema de comida, e sim um problema de acesso. Como dizia o relator da ONU para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, em uma entrevista ao EL PAÍS: "A fome é um problema político. É uma questão de justiça social e políticas de redistribuição".
Se queremos acabar com a fome no mundo, é urgente apostar em outras políticas agrícolas e alimentares que coloquem no centro as pessoas, suas necessidades, aqueles que trabalham a terra e o ecossistema. Apostar naquilo que o movimento internacional da Via Campesina chama de "soberania alimentar", e recuperar a capacidade de decidir sobre o que comemos. Tomando emprestado um dos lemas mais conhecidos do Movimento 15-M: é necessária uma "democracia real, já", na agricultura e na alimentação.
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