sexta-feira, 30 de setembro de 2011

INDIGNAI-VOS!

CARLOS SCHMIDT
Coordenador do Núcleo de Economia Alternativa e Professor da Faculdade de Ciência Econômicas da UFRGS

Peço desculpas à Stéphane Hessel por plagiar o título de seu manifesto, mas acredito que ele não se importaria, pois deve pensar que sua iniciativa pode ser multiplicada.

Como alguns sabem, coordeno o Núcleo de Economia Alternativa (NEA) que desenvolve trabalho de pesquisa, ensino e extensão voltado para formas alternativas de práticas econômicas e especula sobre a viabilidade da transformação social.

Um dos trabalhos que realizamos é o apoio à comercialização dos produtos da agricultura familiar, em particular, dos assentamentos da reforma agrária, na perspectiva da sustentabilidade social, ambiental e da segurança alimentar.

Na prática, busca-se através de um ponto de comercialização da economia solidária (Contraponto), a venda dos produtos agroecológicos e o abastecimento do sistema dos restaurantes universitários, com produtos desta natureza, por agricultores dos assentamentos.

Evidentemente, como é papel da Universidade nesta prática extensionista, está se buscando a geração de conhecimento que possa servir a formulação de políticas públicas, bem como, a discussão de elementos centrais da economia como a teoria do consumidor.

Como parte da estratégia de atendimento dessa demanda socialmente orientada, programamos, junto com colegas da engenharia de produção a realização de uma feira agroecológica ao lado da Contraponto (espaço ocioso) a ser feita por mulheres do assentamento de Viamão, filhos de Sepé. Esta feira seria semanal.

Como de praxe, fizemos uma solicitação à Superintendência de infra-estrutura, garantindo a não utilização do estacionamento e a limpeza pós realização da feira.

Para surpresa nossa, a demanda foi negada e depois de inúmeras tentativas de contatar os responsáveis, estes, concederam a graça de nos receber.

Surpresa novamente! Deparamo-nos com um doublé de funcionário do capital e chefete latino-americano, na robusta pessoa do Professor Tamagna. Funcionário do capital nos propósitos e chefete no método autoritário.

O referido professor ao ser interrogado sobre o direito que tinham os Bancos de espalhar seus quiosques pelo pátio da Universidade, disse que estes tinham direito porque pagavam. E quando perguntado sobre a existência de regras escritas a este respeito, alegou que neste assunto, quem mandava era ele.

Se alguém tem dúvida que para alguns personagens da administração central da universidade, esta deve funcionar, exclusivamente, para o andar de cima da sociedade, a situação acima relatada fala por si só.

Aliás, recordando das posições do Professor Tamagna no Conselho Universitário, estas, eram sempre alinhadas com o bloco da UFRGS/S.A.

Tivemos, recentemente em nossa Universidade, um seminário da corrente universitária “Universidade Popular”, que discutiu ampla e profundamente as dificuldades da Universidade ser plural quanto as suas finalidades, assim muito mais dificuldade teria de ser uma instituição voltada para os interesses da maioria da população.

Portanto, o fato antes relatado, mostra o quanto estão seguros os setores que propugnam uma Universidade voltada aos interesses do capital, com métodos que privilegiam os critérios de mercado (quem paga pode) e exclui, despudoradamente, “esta gente diferenciada” que ousa querer fazer da Universidade um espaço que também é seu, que estuda suas questões, que os acolhe para o diálogo de saberes e que os assume como membros do corpo discente.

Se permitirmos que atitudes truculentas como esta tenham livre curso, outras bandeiras democráticas e inclusivas pelas quais lutamos ficarão cada vez mais distantes. Portanto indignai-vos e ajam em conseqüência.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

MST desencadeia ocupações no Rio Grande do Sul

PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO - RIO GRANDE DO SUL

Na esteira da vaga grevista dos últimos meses, que envolveu trabalhadores das escolas públicas estaduais e das universidades federais, trabalhadores dos correios e bancários, o MST abriu, na madrugada desta segunda-feira, uma jornada de ocupações no Rio Grande do Sul. Acusando o descumprimento de um compromisso firmado pelo governo de estado e o governo federal, os companheiros de luta do MST iniciaram a ocupação simultânea de três áreas no estado: uma de 600 hectares em Viamão, próxima ao assentamento Sepé, na região metropolitana de Porto Alegre, outra de 400 hectares em Vacaria, próxima a BR 285, e outra de 300 hectares em Sananduva.

Segundo um dos coordenadores da Frente de Massas do MST, João Paulo da Silva, acampado há quase dois anos em Livramento, “desde a assinatura do acordo em abril, nenhuma família foi assentada”. E acrescenta: “para compreender a origem dessas ocupações, temos que falar de um processo de três anos, nos quais nenhum assentamento novo foi realizado no estado”.

Além dos mais de mil trabalhadores e trabalhadoras rurais mobilizados para estas ocupações, os companheiros responsáveis pela direção do movimento convocaram também o apoio de trabalhadores urbanos, vinculados a diversas lutas sindicais. Numa declaração emocionada, e falando em nome da direção das atuais ocupações, um companheiro expressou sua alegria, e destacou como algo inédito, “poder estar compartilhando esta jornada de lutas com os camaradas da cidade”. De fato, estabeleceu-se uma relação de solidariedade ativa e fraterna entre trabalhadores rurais e urbanos, identificados com a luta pela revolução social, abrindo-se aos apoiadores, até mesmo a possibilidade de integração orgânica nas comissões de infra-estrutura. Entre os apoiadores presentes nesta luta estavam militantes da Unidade Classista, da UJC e do PCB; estavam os companheiros da Resistência Popular (Utopia e Luta), do Movimento de Luta pela Moradia, do Movimento dos Trabalhadores Desempregados, além de vários militantes “independentes”.

O silêncio deliberado dos meios de comunicação corporativos do RS, cúmplices da propriedade privada, do latifúndio, do agronegócio e dos governos de plantão, ao recusarem repercutir as ocupações iniciadas hoje, comprova a necessidade de uma unidade viva entre os trabalhadores da cidade e do campo, como meio para se ampliar a visibilidade das lutas em curso e divulgar as justas pretensões do movimento. É neste sentido que já estão sendo preparadas, em Porto Alegre, mobilizações de apoio às recentes ocupações.

Nesta terça-feira, o governo de Tarso Genro mostrou que não tem a menor intenção de tratar com seriedade as reivindicações dos trabalhadores sem-terra em luta. Ao dirigir a ação da Brigada Militar no sentido de intimidar os trabalhadores e orientá-la a impedir que água e alimentos cheguem aos acampados, o governo do PT demonstra, a exemplo dos liberais, que irá tratar esta luta social como um caso de polícia. Entretanto, engana-se o governo Tarso ao pensar que pode derrotar os trabalhadores usando a eloqüência da força, pois para nós “Ocupar, Resistir, Produzir” não é apenas uma mera palavra de ordem, mas uma determinação irredutível!

Os trabalhadores acampados em Viamão, Vacaria e Sananduva lutam pelo assentamento imediato de 100 famílias e cobram, dos governos estadual e federal, o assentamento de mil famílias ainda em 2011. Os trabalhadores rurais sem-terra permanecerão firmes nas áreas ocupadas, pelo tempo que for necessário, até alcançar suas reivindicações: eles sabem, e muito bem, que somente a sua luta e a sua resistência serão capazes de fazer avançar a Reforma Agrária neste país.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

MST faz três ocupações no Rio Grande do Sul

O MST realizou, nesta segunda-feira (26/09), três ocupações no Rio Grande do Sul. As famílias Sem Terra ocupam as áreas para pressionar os governos federal e estadual o cumprimento do acordo firmado em abril deste ano de assentar todos os trabalhadores e trabalhadoras acampadas hoje no estado.

Na região de Porto Alegre, mais de 300 trabalhadores ocupam uma área na RS 040, próximo ao posto do pedágio de Viamão. O local foi motivo de investigação da Polícia Federal que neste ano encontrou mais de 2 toneladas de maconha na área.

Em Vacaria, mais de 500 pequenos agricultores ocupam uma área de 400 hectares de terra próximo a BR 285, à 1km da entrada da cidade. A área, que é pública, foi destinada pelo governo para pesquisa e experimentos de plantas, mas não está sendo utilizada para esse fim.

Já em Sananduva, mais de 200 trabalhadores rurais Sem Terra ocupam uma área com mais de 300 hectares que poderia ser destinada para o assentamento das famílias acampadas no estado.

O MST está mobilizado nas regiões para pressionar os governos federal e estadual para que realize o assentamento imediato das atuais mil famílias acampadas no Rio Grande do Sul. Em abril, o governo do estado, depois de um acordo com o governo federal, se comprometeu em assentar as famílias que se encontram acampadas embaixo da lona preta em todo o estado. Desde a assinatura do “Termo de Compromisso” com os camponeses, nenhuma família foi assentada.

Os trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra devem permanecer nas áreas por tempo indeterminado, pois compreendem que somente a ocupação e resistência fazem com que o poder público realize a Reforma Agrária no país. As famílias só devem deixar os locais caso os governos apresentem soluções definitivas para o assentamento.

O texto "MST faz três ocupações no Rio Grande do Sul" foi originalmente publicado no site do MSThttp://www.mst.org.br/MST-faz-tres-ocupacoes-no-Rio-Grande-do-Sul

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Ciclo de Palestras no Clube de Cultura: A CRISE DO NEOLIBERALISMO E A INTERVENÇÃO NO ORIENTE MÉDIO E ÁFRICA DO NORTE


Ciclo de Palestras A CRISE DO NEOLIBERALISMO
E A INTERVENÇÃO NO ORIENTE MÉDIO E ÁFRICA DO NORTE

Beatles se recusaram a tocar para plateia segregada nos EUA

Banda mostrou posicionamento
diante de política racista
Uma lista de exigências feita pelos Beatles em 1965 para realizar um show nos Estados Unidos incluiu a recusa da banda em tocar diante de uma plateia em que brancos e negros estivessem segregados.

A lista de exigências formulada pela banda deverá ir a leilão na cidade americana de Los Angeles no próximo dia 20 de setembro e a expectativa é de que o documento alcance um um valor de até US$ 5 mil (cerca de R$ 8,6 mil).

O contrato contendo as demandas do lendário grupo de Liverpool mostra que os Beatles tinham um posicionamento claro em relação à política racial discriminatória em vigor nos Estados Unidos, em um momento em que o movimento de direitos civis comandado por Martin Luther King começava a ganhar força.

No ano anterior, Luther King vencera o Prêmio Nobel da Paz por sua campanha pacífica de desobediência civil contra a política segregacionista ainda em vigor em boa parte dos Estados Unidos.

Humildade

O documento com as pré-condições para tocar no Cow Palace, em Daly City, no Estado americano da Califórnia, mostra ainda uma humildade que destoa das listas de exigências feitas por roqueiros atualmente.

O documento, assinado pelo empresário do grupo, Brian Epstein, diz que a banda não iria tocar diante de ''uma plateia segregada'' e solicita um camarim contendo ''quatro camas portáteis, espelhos, um isopor para para guardar gelo, uma TV portátil e toalhas limpas''.

O grupo faz ainda um prosaico pedido por ''eletricidade e água''.

As únicas exigências mais elaboradas foram pedidos de que ''150 policiais uniformizados forneçam proteção'' à banda e a solicitação de ''um palco especial para a bateria de Ringo (Starr)''.

O texto "Beatles se recusaram a tocar para plateia segregada nos EUA" foi originalmente publicado no site da BBC Brasilhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/09/110916_beatles_exigencias_bg.shtml

O fim da ética da IstoÉ, a revista que vende reportagens por quilo

SECRETARIA NACIONAL DO MST


A revista IstoÉ publica na capa da edição desta semana um boné do MST bem velho e surrado, sob terras forradas de pedregulhos.

Decreta na capa “O fim do MST”, que teria perdido a base de trabalhadores rurais e apoio da sociedade.

Premissa errada, abordagem errada e conclusões erradas.

A mentira

A IstoÉ informa a seus leitores que há 3.579 famílias acampadas no Brasil, das quais somente 1.204 seriam do MST.

A revista mente ou equivoca-se fragorosamente. E a partir disso dá uma capa de revista.

Segundo a revista, o número de acampamentos do MST caiu nos últimos 10 anos. E teria chegado a apenas 1.204 famílias acampadas, em nove acampamentos em todo o país.

Temos atualmente mais de 60 mil famílias acampadas em 24 estados.

Levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) aponta que há 156 mil famílias acampadas no país, somando todos os movimentos que lutam pela democratização da terra.

A revista tentou dar um tom de credibilidade com as visitas a uma região do Rio Grande do Sul, onde nasceu o Movimento, e ao Pontal do Paranapanema, em São Paulo.

Se contasse apenas os acampados nessas duas regiões, chegariam a um número bem maior do que divulgou.

A reportagem poderia também ter ido à Bahia, por exemplo, onde há mais de 20 mil famílias acampadas que organizamos.

O repórter teve oportunidade de receber esses esclarecimentos e até a lista de acampamentos pelo país.

Mas não quis ou não fez questão, porque se negou a mandar as perguntas por e-mail para o nosso setor de comunicação.

Outra forma seria perguntar para o Incra ou pesquisar no cadastro do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).

Tampouco isso a IstoÉ fez.

Se foi um erro, além de incompetente, a direção da IstoÉ é irresponsável ao amplificá-lo na capa da revista.

Se não foi um erro, há mais mistérios entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia, como escreveu William Shakespeare.

O desvio

A IstoÉ se notabilizou nos últimos tempos nos meios jornalísticos como uma revista venal. A revista é do tipo “pagou, levou”. Tanto é que tem o apelido de "QuantoÉ".

Governos, empresas, partidos, entidades de classe, igrejas (vejam a capa da semana anterior) compram matérias e capas da revista. E pagam por quilo, pelo “peso” da matéria.

A matéria da IstoÉ não é fruto de um trabalho jornalístico, mas de interesses de setores que são contra os movimentos sociais e a Reforma Agrária.

Não é de se impressionar uma vez que a revista abandonou qualquer compromisso com jornalismo sério com credibilidade, virando um “ativo” para especuladores.

Nelson Tanure e Daniel Dantas, do Grupo Opportunity, banqueiro marcado por casos de corrupção, disputaram a compra da revista em 2007.

Com o que esses tipos têm compromisso? Com o dinheiro deles.

Reação do latifúndio

A matéria é uma reação à nossa jornada de lutas de agosto.

Foram mobilizados mais de 50 mil trabalhadores rurais, em 20 estados.

Um acampamento em Brasília, com 4 mil trabalhadores rurais, fez mobilizações durante uma semana e ocupou o Ministério da Fazenda para cobrar medidas para avançar a Reforma Agrária.

A jornada foi vitoriosa e demonstrou a representatividade social e a solidez das nossas reivindicações na luta pela Reforma Agrária.

O governo dobrou o orçamento para a desapropriação de terras para assentar 20 mil famílias até o final do ano, liberou o orçamento para cursos para trabalhadores Sem Terra, anunciou a criação de um programa de alfabetização e a criação de um programa de agroindústrias.

Interesses foram contrariados e se articularam para atacar o nosso Movimento e a Reforma Agrária. Para isso, usam a imprensa venal para alcançar seus objetivos.

Os resultados da jornada e a reação do latifúndio do agronegócio, por meio de uma revista, apenas confirmam que o MST é forte e representa uma resistência à transformação do Brasil numa plataforma transnacional de produção de matéria-prima para exportação e à contaminação das lavouras brasileiras pela utilização excessiva de agrotóxicos.

A luta vai continuar até a realização da Reforma Agrária e a consolidação de um novo modelo agrícola, baseado em pequenas e médias propriedades, no desenvolvimento do meio rural, na produção de alimentos para o povo brasileiro sem agrotóxicos por meio da agroecologia.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A Guerra dos Farrapos e seus Lanceiros Negros Traídos

HEMERSON FERREIRA
Professor de História - hemersonfer@bol.com.br


Um breve resumo de como os Farroupilhas sulistas recrutaram e depois descartaram seus soldados negros


Durante a chamada Guerra dos Farrapos no Rio Grande do Sul (1835-45), quando um homem livre era chamado a servir tanto nas forças rebeldes quanto nas imperiais, podia enviar em seu lugar (ou no lugar de um filho seu) um de seus trabalhadores escravizados. Em alguns casos, o alforriavam e alistavam. Também foi prática comum buscar atrair ou tomar cativos das tropas inimigas, trazendo-os para seu lado. O primeiro exército a utilizar negros escravizados como soldados foram os imperiais. Precisando também formar uma infantaria e sobretudo preferindo enviá-los como bucha-de-canhão, morrendo na frente em seu lugar, farrapos também os alistaram: eram os famosos Lanceiros Negros. Ambos, farrapos ou imperiais, prometiam também liberdade aqueles que desertassem das tropas rivais, mudando de lado.

A maioria dos cativos que combateu nesta guerra foi obrigada a fazê-lo diante das condições impostas. Por outro lado, apesar da guerra ser horrível e violenta, era até preferível a vida militar, com seus esporádicos combates, do que as agruras diárias da escravidão. A promessa de liberdade após o fim da luta certamente pode ter influenciado em muito o recrutamento daqueles homens. Uma promessa, aliás e como veremos, jamais cumprida.

Não havia igualdade nas tropas farroupilhas, muito menos democracia racial. Negros e brancos marchavam, comiam, dormiam, lutavam e morriam separadamente. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos, e jamais um negro chegou a um posto significante, mesmo que intermediário, de comando. Aos Lanceiros Negros era vedado o uso de espadas e armas de fogo de grande porte. Não lutavam a cavalo, como costumam mostrar nos filmes e mini-séries de TV, mas sim a pé, pois havia o risco de se rebelar ou fugir. Sua arma principal era a grande lança de madeira que lhes deu nome e fama, algumas facas, facões, pequenas garruchas, os pés descalços, a bravura e o anseio pela liberdade prometida.

Seria anacronismo se quiséssemos que líderes farroupilhas tivessem um comportamento ou posições políticas avançadas e assim diferentes das existentes em seu tempo, mas defesa da Abolição da escravidão era bem conhecida e nada alienígena na época. Uma Abolição começou a ser decretada em Portugal em 1767, proibindo que fossem enviados para o reino mais cativos vindos da África, e em 1773 foi decretada uma Lei do Ventre Livre naquele país. Na Dinamarca, isso se deu em 1792. Na França, em 1794 (ainda que Napoleão tenha tentado restabelecer a escravidão no Haiti em 1802). No México, uma primeira tentativa de Abolição foi feita em 1810, mas foi finalmente vitoriosa em 1829. Bolívar libertou cativos em 1816-7, durante suas lutas por independência, e finalmente aboliu a escravatura em 1821. A Inglaterra, que havia findado a escravidão pouco antes da Revolta dos Farrapos, pressionava o Brasil pelo fim do tráfico negreiro desde 1808. Willian Wilbeforce, um dos maiores abolicionistas da história, morreu em 1833, ou seja, dois anos antes da guerra no Sul do Brasil. Farrapos, portanto, conheciam, sim, e muito bem o abolicionismo.

Entretanto,os principais chefes farrapos, Bento Gonçalves, Canabarro, Gomes Jardim e até Netto, dentre outros, eram todos ferrenhos escravistas. Quando aprisionado e enviado para a Corte no Rio de Janeiro, Bento Gonçalves teve o direito de levar consigo um de seus cativos para lhe servir. Ao morrer, o mais conhecido líder farroupilha deixou terras, gado e quase cinqüenta trabalhadores escravizados de herança aos seus familiares. Bem diferente do que fizera Artigas no Uruguai anos antes, os farrapos jamais propuseram uma reforma agrária ou mesmo uma distribuição de terras entre seus soldados, mesmo os brancos pobres, que dirá os negros. A defesa da escravidão era tão clara entre os chefes farrapos a ponto deles jamais sequer terem mencionado o fim do tráfico negreiro.

Ao fim da guerra e já quase totalmente derrotados, os farrapos incluíram entre suas exigências para o Império o cumprimento da promessa de liberdade que haviam feitos aos Lanceiros (principalmente porque temiam que eles formassem uma guerrilha negra na província já que a quebra da promessa os faria se rebelar ou fugir para o Uruguai, destino comum de diversos cativos fugitivos na época). Queriam entregar-se ao Império, acabar a guerra, voltar à normalidade, mas tinham os Lanceiros e a promessa que lhes haviam feito, e o Império, escravista até a medula, não queria cumprir essa parte do acordo.

Que fazer então? A questão foi resolvida na madrugada de 14 de novembro de 1844, quando o general farrapo David Canabarro entregou seus Lanceiros desarmados ao inimigo, tudo previamente combinado com Caxias. E no serro de Porongos, hoje região de Pinheiro Machado (interior do Rio Grande do Sul), foi dizimada quase toda a infantaria negra, enterrando de vez a preocupação dos farrapos e acelerando assim a paz com o Império. A instrução de Caxias a um de seus comandados foi clara e objetiva: a batalha teria que ser conduzida de forma tal que poupar apenas e dentro do possível o sangue de brasileiros (e o negro era então tratado como africano, mesmo que já nascido no Brasil).

Alguns historiadores apologistas ou folcloristas de CTGs consideraram aquela traição como Surpresa, já que pela primeira vez que o então vigilante Davi Canabarro teria sido surpreendido pelo inimigo. Conversa fiada! Enquanto dispôs suas tropas negras de tal maneira que ficassem desarmadas e descobertas, algo que até então nunca havia feito, Canabarro se encontrava bem longe e seguro do local, nos braços de Papagaia, alcunha de uma amante sua.

Após o combate, um relato oficial avisou a Caxias que pelo menos 80% dos corpos caídos no campo de Porongos eram de homens negros. Calcula-se que, nos últimos anos daquela conflito, os farrapos ao todo somavam uns cinco mil homens, sendo que algo em torno de mil eram Lanceiros Negros. Após o Massacre de Porongos, porém, restaram apenas uns 120 deles, feridos, alguns mutilados, e que foram primeiramente enviados para uma prisão no centro do país e depois dispersados para outras províncias, ainda mantidos como cativos.

Feito isso, deu-se a chamada rendição e paz do Poncho Verde, onde senhores escravistas dos dois lados trocaram abraços e promessas de lealdade e, logo depois, marcharam juntos e sob a mesma bandeira imperial contra o Uruguai, Argentina e Paraguai.

Bibliografia

FACHEL, José Plínio Guimarães. Revolução Farroupilha. Pelotas: EGUFPEL, 2002.

FERREIRA, Hemerson. Da Revolta à Semana Farroupilha: entre tradição e a história. http://prod.midiaindependente.org/en/blue/2009/08/451359.shtml

FLORES, Moacyr & FLORES, Hilda Agnes. Rio Grande do Sul: aspectos da Revolução de 1893. Porto Alegre: Martins-Livreiro, 1993.

GOLIN, Tau. Bento Gonçalves, o herói ladrão. Santa Maria: LGR, 1983.

LEITMAN, Spencer. Raízes sócioeconómicas da Guerra dos Farrapos: um capítulo da história do Brasil no século XIX. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

MAESTRI, Mário. "O negro escravizado e a Revolução Farroupilha". In: O escravo gaúcho: resistência e trabalho. Porto Alegre: UFRGS, 1993, pp76-82.

MASSACRE DE PORONGOS: NÓS NUNCA ESQUECEREMOS!

Movimento por uma Universidade Popular

MAURO IASI
Professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.


Mauro Iasi no I SENUP
Entre os dias 2 e 4 de setembro aconteceu em Porto Alegre um encontro que sobre muitos aspectos é uma grata novidade no movimento estudantil: o I Seminário Nacional de Universidade Popular (SENUP). Primeiro uma novidade porque em momentos como os nossos de fragmentação ele se construiu como um espaço unitário e, segundo, porque começa a superar a mera agenda reativa e toma uma direção ativa na construção de uma proposta para a Universidade no Brasil.

Os modelos universitários sempre guardam relação profunda com as formas societárias que lhes abrigam e refletem a luta entre interesses e perspectivas das classes em disputa em cada momento histórico. Foi assim na experiência Inglesa nos séculos XVII e XVIII , quando se tentou inserir novos conteúdos, adequados aos interesses burgueses em formação, mantendo-se a velha forma da Universidade medieval baseada no conhecimento como revelação e domínio de poucos iluminados. No século XIX, principalmente na França de Napoleão, exige-se do conhecimento e da Universidade que forme os profissionais do Estado, que desempenhe uma função prática e útil ao desenvolvimento do capitalismo, como se expressa na briga entre Napoleão e o Institut de France de Destutt de Tracy e seus ideólogos, fazendo com que a Universidade se fragmentasse em faculdades específicas formando profissões especializadas na lógica positivista.

Na Alemanha, em 1810, através das reformas de Humboldt, a questão era outra. A Alemanha, ainda parte do Império Prussiano, não realizara nem sua revolução industrial, nem a revolução política típicas da ordem burguesa e exigia do Estado o papel de indutor desta mudança, tal como ocorreria depois, entre 1870 e 1871, com Bismarck. Neste cenário a Universidade deveria fornecer as bases para o desenvolvimento de um pensamento próprio que fundamentasse a pesquisa e servisse de cimento de uma unidade nacional e formação.

É, no entanto, no século XX e em nossa América Latina que um elemento da moderna concepção de Universidade emerge. Além de sede do conhecimento acumulado, da formação dos profissionais e lócus da pesquisa, a Universidade seria chamada a olhar para a sociedade real e suas demandas, dialogar com o conhecimento produzido fora dela e enfrentar as lutas sociais que exigiam que rompesse seu casulo. Um dos momentos decisivos deste processo se dá na Argentina em 1918, na esteira de acontecimentos como a Revolução Mexicana e a Revolução Russa. Protagonizada por uma revolta estudantil na cidade de Córdoba a Universidade foi sacudida pela exigência de democratização, eficácia e um papel mais atuante na sociedade.

O movimento de Córdoba trazia algumas características próprias deste período que se abria e que se expressaria novamente com vigor nas revoltas estudantis francesas de 1968, ou seja, a ligação dos estudantes com as lutas sociais mais amplas e o movimento operário, assim como o papel de novas camadas médias em expansão (idem, ibidem).

O resultado desse movimento foi o desenvolvimento daquilo que se chamaria de educação continuada e depois de extensão universitária, iniciativa fundada no desejo de levar àqueles que estão fora da universidade parte do conhecimento ali desenvolvido denunciando o elitismo inerente na forma universitária que se consolidara na América Latina.

Como vemos, o modelo que herdamos não é simplesmente um entre estes descritos (universidade como sede do saber acumulado, formação profissional, pesquisa e extensão), mas uma síntese, nem sempre harmônica dos elementos que constituíram sua história. Como diria Hegel, que, aliás, foi reitor na Universidade de Berlim a partir de 1830 até sua morte um ano depois, a verdade está no todo, mas o todo nada mais é que o processo de sua identificação, antes de tudo, resultado.

O que queremos então: uma universidade pública, com acesso universal, democrática em sua gestão, que articule ensino, pesquisa e extensão e responda às reais demandas da sociedade? Existe um provérbio chinês que nos aconselha a ter cuidado com o que desejamos porque pode se realizar. A boa notícia para aqueles que têm propostas rebaixadas é que já temos esta universidade, a má notícia é que esta universidade com todos os problemas que enfrentamos é pautada por estes parâmetros.

O que os estudantes reunidos em Porto Alegre descobriram pela sua experiência própria é algo da maior relevância. A universidade que temos, seus limites e contradições, não são apenas limites e problemas de um modelo universitário – o que implicaria na proposição de saídas técnicas, administrativas e pedagógicas que nos levassem na direção de outro modelo – mas, expressão dos limites da emancipação política própria da ordem burguesa, ou seja, é o máximo de emancipação que podemos chegar “dentro da ordem mundana até agora existente”.

A universidade é publica, ou seja, de todos e, portanto, tem que haver uma disputa entre os indivíduos para ocupar suas vagas e só os mais capazes é que lá chegam levando a meritocracia e o vestibular como forma natural de acesso; é mais ou menos democrática em sua gestão (ainda não se superou totalmente os entraves e entulhos da Ditadura como as malditas listas tríplices na eleição de reitor e uma paridade duvidosa na representação dos segmentos da comunidade universitária); articulasse as dimensões do ensino, da pesquisa e da extensão, inclusive por força constitucional (artigo 207 da CF) e, o que pode parecer um paradoxo, responde às reais demandas da sociedade, uma vez que estamos na sociedade do capital e as suas personificações são organizadas e presentes fazendo com que seus interesses se expressem como hegemônicos.

O que os estudantes perceberam corretamente é que uma Universidade Popular não pode ser a universidade que temos “democratizada”, com mais acesso dos trabalhadores e com trabalho de extensão. Todos estes aspectos não são contraditórios com o papel da Universidade que temos como um aparelho privado de hegemonia da burguesia, pelo contrário, é a forma pela qual tal aparelho se legitima. A burguesia tem uma especificidade histórica, mais do que seus antecessores ela precisa apresentar seus interesses particulares como se fossem universais.

A Universidade que temos e o momento pelo qual passa é a expressão do limite da emancipação política. Ela tem ampliado o acesso, tem aumentado o número de instituições públicas, tem formado mais profissionais, feito mais pesquisas, desenvolvido tecnologia e ciência e, nos marcos do desmonte do Estado, tem feito isso com eficácia, isto é, com as parcas verbas do fundo público que, por insuficiente, tem que ser completado pelos mecanismos privatistas (diretos ou indiretos) das Fundações, Instituições de Fomento ou de financiamento direto das empresas privadas e algumas ditas públicas.

A Universidade a serviço da “sociedade”, isto é, do mercado, a universidade como meio individual de mobilidade social, formando a força de trabalho através de cursos cada vez mais técnicos e profissionalizantes, ao mesmo em que tempo isola em ilhas de excelência a formação de pensadores e pesquisadores de elite cada vez mais restrita e renovada.

Para aplacar as consciências: a extensão. Sempre valorizada no discurso para ser menosprezada na prática. Considerada como prática menor e não científica, como caridade assistencial, como oferecimento de sobras simplificadas do conhecimento. Os pobres podem entrar na Universidade, garante-se o acesso, mas não a permanência, terão que disputar como indivíduos uma vaga, uma bolsa, um lugar no alojamento, e serão tratados como um corpo estranho a ser expelido do copo saudável do templo do conhecimento e do mérito. Para os poucos que vencem os desafios, devem se tornar como eles, abandonar sua identidade e sua consciência de classe, pedir acesso à classe média intelectualizada sem nunca ser de fato aceito, um escravo na casa grande, um bibelô pitoresco para ser exibido como prova de nossa sociedade democrática e inclusiva em que cada um, por seus próprios méritos pode subir na vida e ter uma oportunidade de pisar nos que ficaram em baixo.

Bom, se a Universidade como aparelho privado de hegemonia, local de reprodução do saber, da formação profissional e da ideologia dominantes, é um instrumento da hegemonia burguesa, qual o papel de um movimento por uma Universidade Popular? Não pode ser a pretensão de que se altere este caráter no âmbito universitário sem que se alterem seus fundamentos, ou seja, as relações sociais de produção e as formas de propriedade próprias da ordem do capital. Neste sentido, o movimento por uma Universidade Popular é um movimento contra-hegemônico.

Não podemos impedir que a burguesia e seus aliados expressem seus interesses no fazer diário da Universidade, mas temos o dever de apresentar ali os interesses dos trabalhadores. Devemos afirmar, parodiando Brecht, que ali onde a burguesia fale, os trabalhadores falarão, ali onde os exploradores afirmem seus interesses, os explorados gritarão seus direitos, ali onde os dominadores tentarem mascarar sua dominação sob o véu ideológico da universalidade, os dominados mostrarão as marcas e cicatrizes de sua exploração.

Na prática isso significa uma defesa intransigente do caráter público da universidade contra suas deformações mercantilizantes e privatistas em curso; não uma convivência formal entre ensino, pesquisa e extensão, mas sua efetiva integração; a recusa em aceitar uma formação profissional rebaixada convivendo com as ilhas de excelência, mas tomar de assalto o templo do saber e dotar de toda a complexidade e riqueza do conhecimento como condição de execução das diferentes frentes de ação profissional; romper os muros universitários não para levar conhecimento aos “menos favorecidos”, mas para constituir uma unidade real com a classe trabalhadora e suas reais demandas como o sangue vivo das necessidades que deve correr nas veias da busca pelo conhecimento que garanta a reprodução da vida e não a boa saúde da acumulação do capital.

Por tudo isso, a universidade que queremos construir é mais que pública (precisa ser radicalmente pública, mas é insuficiente), é popular, com toda a imprecisão que o termo traz e que precisamos polir até chegar à construção contra-hegemonica que contraponha os interesses da burguesia com a sólida afirmação da independência e autonomia dos interesses dos trabalhadores. Por isso, por sua intencionalidade e sua direção, a luta por uma Universidade Popular é uma luta anticapitalista e socialista, ou seja, ao se defrontar com os limites da emancipação política burguesa apresenta a necessidade da emancipação humana.

Quando recebia o título de Professor Honoris Causa em uma universidade de Cuba depois da revolução de 1959, Ernesto Che Guevara alertava em seu discurso de agradecimento lembrando os presentes que o estudo e o conhecimento não são patrimônio de ninguém, pertencem ao povo e ao povo o darão ou o povo o tomará e concluiu dizendo: há que se pintar a universidade de negro, de mulato, de operário e camponês, há que se descer até o povo e vibrar como ele, sentindo suas verdadeiras necessidades.

Os meninos e meninas, quase quinhentos participantes, que lotaram o auditório da tradicional faculdade de Direito da UFRGS, representando trinta e três universidades de quase todos os estados brasileiros, estavam vibrando, em sintonia com os trabalhadores e suas reais necessidades, se movimentarão e seu grito será ouvido: é hora de ousar, é hora de lutar, é hora de criar uma Universidade Popular.

Sugestões de leitura:

GUEVARA, E. C. Textos Políticos e Sociais. São Paulo: Ed. Populares, 1987.
HEGEL, G. W. F. A fenomenologia do espírito. Vol. 1. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
MARX, K. Questão Judaica, in Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Lisboa: Ed. 70, 1993.
MAZZILLI, S. A idéia de universidade no Brasil (…). Universidade e Sociedade, ano XX, n. 47 de maio de 2011, pp. 110- 120. DF: ANDES-SN,2011.
SENUP. Cartilha preparatória. I Seminário Nacional de Universidade Popular, 2011.

O I SENUP é uma iniciativa de vários estudantes e suas organizações (entre elas a FEAB – Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil – e a ENESSO – Executiva Nacional dos Estudantes de Serviço Social - organizações estudantis (Juventude Comunista Avançando, Juventude Liberdade e Revolução, União da Juventude Comunista, etc.), núcleos de luta por uma universidade popular (CTUP, MUP, etc) e organizações políticas como o PCB, a CCLCP e a Refundação Comunista que se encontram desde 2010 com a intenção de criar um movimento nacional por uma Universidade Popular.

sábado, 17 de setembro de 2011

Guerra Farroupilha: História e Mito


MÁRIO MAESTRI
Historiador e professor universitário (UPF)
maestri@via-rs.net

1. A revolta dos grandes fazendeiros

Um gaudério devidamente maneado pelo mito
No extremo sul do Brasil, apenas os festejos da Semana da Pátria, com o apogeu no 7 de Setembro, data da ruptura com ex-colônia com Portugal, voltam para a garagem das efemérides anuais, aquecem-se os motores para a largada da Semana Farroupilha, com linha de chegada em 20 de Setembro, data do ingresso dos rebeldes farroupilhas em Porto Alegre, em 1835, inicio da ruptura da então província sulina com o resto do país.

Através do Rio Grande do Sul, como pequenos robôs esquizofrênicos, os estudantes nas escolas públicas e particulares agitam primeiro as cores verde e amarela das bandeirolas do unitarismo nacional, inaugurado em 1822, para saudarem dias mais tarde, com igual ânimo patriótico, o verde-amarelo-vermelho do separatismo sul-rio-grandense de 35!

Nenhum estado brasileiro celebra data cívica regional com tamanha magnificência. Do Mampituba ao Chuí, do rio Uruguai ao oceano Atlântico, nos pampas, na Serra, no Planalto, na Depressão Central e no Litoral, organizam-se desfiles, celebrações, festas. A mídia comenta fartamente os fatos do passado e as comemorações em desenvolvimento. De certo modo, a Semana Farroupilha está para o gaúcho como o Carnaval está para o carioca.

A Semana Farroupilha é sobretudo festa pública. Desde que foi oficializada, em setembro de 1964, no início do Regime Militar [1964-1984], o governo estadual sul-rio-grandense abraçou fortemente as comemorações, verdadeira tradição nas escolas públicas estaduais e municipais. Nesse sentido, a passada administração petista [1999-2002] apenas vergou-se à tradição nascida há mais de 30 anos, ao manter retoques a festa patriótica regional.

Os com e os sem

A celebração privada da independência farroupilha é também magnífica e portentosa. Almoços, jantares, bailes, shows, conferências, acampamentos, palestras, exposições, etc. são realizados na capital e no interior, sobretudo por iniciativa do Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG –, através dos milhares de Centros de Tradição Gaúcha – CTG – esparramados através do Estado.

A Semana Farroupilha é unanimidade regional, congregando cidadãos de todas as regiões, origens, classes sociais e situações. Na roda de chimarrão, reúnem-se o ítalo, o teuto, o nipo, o luso, o afro-descendentes. Achegam-se à chama crioula o bem empregado, o mal-empregado e o desempregado; o esquerdista, o centrista e o direitistas; os com muito, os com pouco, os sem nada.

Diante da pira cívica regional e da celebração das raízes e dos princípios que seriam as mais lídimas expressões da Revolta Farroupilha, realiza-se congregação suprapolítica, supra-racial e supra-social que, no Brasil, repete-se apenas quando a Seleção Nacional entra em campo vestindo a bandeira canarinho!

Travada sobretudo no meridião do Rio Grande, a Guerra Farroupilha constituiu apenas um entre os múltiplos movimentos armados liberais, federalistas e separatistas terçados pelas elites proprietárias das diversas regiões do Brasil, inicialmente, contra o regime colonial lusitano e, após 1822, contra o Estado imperial brasileiro.

Num desses paradoxos da história, a guerra farroupilha contra o regime imperial foi movimento elitista, sem nenhum conteúdo social, promovido sobretudo pelos grandes criadores sulinos, que sequer contou com a unanimidade dos proprietários regionais. Não foi movimento de todo os habitantes sulinos, nem de todo o Rio Grande da época.

2. 1822: a Independência dos Escravistas

A América lusitana foi mosaico de regiões semi‑autônomas, de frente para a Europa e para a África, de costas voltadas umas às outras. As diversas colônias luso-brasileiras produziam regionalmente os produtos que exportavam pelos portos da costa, por onde chegavam os manufaturados e os africanos duramente escravizados. Os mercados internos quase inexistiam.

Os senhores luso-brasileiros controlavam o essencial do poder regional e viviam em situação de associação subordinada às elites portuguesas metropolitanas. Eles sentiam-se membros do império lusitano, possuíam fortes laços de identidade regional e desconheciam sentimentos ‘nacionais’ brasileiros efetivos.

Quando da crise colonial, as elites luso-brasileiras mobilizaram-se por independência restrita aos limites objetivos das regiões sócio-econômicas em que viviam e que controlavam. Então, o Brasil era uma entidade essencialmente administrativa. O Estado-nação brasileiro foi sobretudo produto do ciclo nacional-industrialista dos anos 1930. É, portanto, realidade muito recente.

Tendências centrífugas

Nas colônias luso-americanas atuavam as mesmas forças centrífugas que explodiram a América espanhola em uma constelação de repúblicas independentes. Porém, as diversas províncias luso-brasileiras emergiram da Independência coeridas em um Estado monárquico, centralizado, autoritário.

Quando da crise colonial, as classes proprietárias regionais desejavam pôr fim ao governo autocrático lusitano, nacionalizar o comércio monopolizado pelos portugueses, resistir às pressões inglesas pelo fim do tráfico transatlântico de cativos. Elas defendiam soluções federalistas, separatistas, monárquicas e republicanas.

No Norte, no Nordeste, no Centro-Sul e no Sul eram muito fortes as tendências republicanas e independistas. Tudo sugeria que o Reino do Brasil explodiria em diversas repúblicas, ao igual ao ocorrido com os vice-reinados espanhóis, através das possessões hispano-americanas.

Porém, um grande problema angustiava os grandes senhores de todo o Brasil. Como realizar a independência sem comprometer a ordem escravista, base da produção e da sociedade em todas províncias? Fortes choques militares colocariam em perigo a submissão dos cativos e a manutenção do tráfico de trabalhadores escravizados.

Independência negreira

Os senhores sabiam que a guerra levaria ao alistamento e à fuga de cativos, como ocorrera quando da luta contra os holandeses. Havia também o exemplo recente do Haiti, onde os cativos, sublevados, haviam fundado um Estado negro livre da escravidão. Os Estados luso-brasileiros que abolissem a escravidão acolheriam cativos fugidos. As pequenas nações negreiras vergariam-se ao abolicionismo britânico do tráfico.

O Estado monárquico, autoritário e centralizador foi partejado e embalado pelos interesses negreiros. A Independência deu‑se sob a batuta conservadora dos grandes proprietários e comerciantes de trabalhadores escravizados. Os ideários republicano, separatista e federalista – fortes sobretudo entre as fracas classes médias regionais – foram reprimidos.

A independência do Brasil foi a mais conservadora das Américas. Os senhores brasileiros romperam com a coroa portuguesa e com o absolutismo e entronizavam o autoritário herdeiro do reino lusitano. Cortavam as amarras com Portugal e asseguravam os interesses portugueses. Mantiveram-se unidos sobretudo para garantir o abastecimento farto e a exploração dura dos trabalhadores escravizados.

As forças liberais e federalistas regionais curvaram-se à proposta monárquica e unitarista sob a condição que a autonomia provincial fosse discutida quando de Assembléia Constituinte, convocada antes mesmo da Independência. Em novembro de 1823, dom Pedro, digno filho dos Braganças, pôs fim ao regime constitucional e às esperanças federalistas regionais, ao inaugural o primeiro golpe de Estado militar do Brasil.

A ferro e fogo

O golpe anti-constitucional de 1823, e a constituição autoritária imposta em 1824, no contexto de profunda crise da economia escravista exportadora da época, determinaram período de forte instabilidade político-social, durante o qual as facções liberais das elites regionais mobilizaram-se pela independência ou por maior autonomia regional.

Em 1824, a primeira revolta provincial contra o golpismo bragantino, promovida sobretudo pelos liberais e republicanos pernambucanos – Confederação do Equador –, foi sufocado em um verdadeiro banho de sangue. Os líderes liberais foram executados sem o julgamento garantido pela própria Constituição autoritária outorgada por dom Pedro.

A concentração despótica dos poderes e recursos provinciais pelo governo central, em contexto de decadência da economia escravista, levou à deposição de dom Pedro, em 7 de abril de 1831, pelos farroupilhas, como eram chamados os liberais radicais de todas as províncias. Porém, o poder terminou deslizando para as mãos dos liberais conservadores, reais detentores do poder econômico, ou seja, de legiões de trabalhadores escravizados e de imensas parcelas de terras.

Em 7 de abril de 1831, com a partida de dom Pedro e com o fim do controle da administração e do exército por dignitários e oficiais próximos do príncipe português, concluía-se finalmente a independência política do Brasil. Então, o poder central passou ao controle dos representantes dos grandes escravistas, sobretudo do Rio de Janeiro.

3. Revoltas farroupilhas no Brasil e no RS


Apesar de ter debilitado as oposições provinciais, as limitadas concessões regenciais às reivindicações federalistas e liberais lançaram o Império em profunda crise. A negativa da Regência de conceder a monarquia ou a república federativa quase pôs fim à frágil unidade nacional brasileira, pactuada havia dez anos.

Através de todo o Brasil, um rosário de movimentos liberais federalistas e liberais separatistas convulsionou a Regência e o início do II Império: Ceará (1831-2); Pernambuco (1831-5); Minas Gerais (1833-5); Bahia (1837-8); Grão-Pará (1835-40), Maranhão (1838-41); Rio Grande do Sul (1835-45).

O centralismo imperial teria sido possivelmente vergado se cabanos, balaios, sabinos, praieiros, sul-rio-grandense etc. tivessem coordenado suas lutas. Isolados, os movimentos farroupilhas regionais foram esmagados, sucessivamente, um após o outro, pelo poder central.

Liberais radicais

É um acaso histórico que apenas os farroupilhas sulinos sejam conhecidos pela denominação comum a todos os liberais radicais de então. É erro deduzir romanticamente o termo farroupilha/farrapo dos uniformes em frangalhos dos últimos combatentes sulinos.

Os movimentos liberais regenciais foram impulsionados pelas elites dissidentes regionais. No Maranhão (Balaiada) e no Grão-Pará (Cabanagem), as revoltas liberais assumiram claro caráter social com o ingresso na pugna de pobres, caboclos, cativos, quilombolas, etc. O que levou as elites regionais liberais a abandonarem a luta, submetendo-se ao tacão imperial.

Os liberais sulinos reivindicavam a autonomia federativa, e, a seguir, a república separatista. Sobretudo, o movimento interpretou as reivindicações dos criadores do meridião, então hegemônicos. A longevidade da revolta deveu-se também ao fato de as elites sulinas manterem as classes subalternas regionais à margem do movimento.

Em geral, os comerciantes, a população urbana, os colonos alemães, etc. optaram pelo Império, levando a que os farrapos perdessem rapidamente o controle das grandes cidades e, sobretudo, do litoral. Porto Alegre resistiu por três vezes ao cerco farroupilha. O programa liberal-latifundiário farroupilha pouco propunha para esses setores sociais.

A questão oculta

Em 1835, no início da revolta, os farroupilhas controlaram quase toda a província. Em 1845, ao concluir-se o movimento, encontravam-se arrinconados nos pampas da fronteira sul. Tal fato também se deveu à defecção dos grandes comerciantes e charqueadores escravistas, temerosos que a vitória do movimento separatista comprometesse o tráfico internacional de trabalhadores escravizados.

Os farroupilhas jamais foram revolucionários ou reformistas sociais e políticos. Entretanto, continua-se a insistir sobre o pretenso caráter revolucionário do movimento sobretudo porque boa parte das tropas farrapas foram formadas por peões pobres e ex-cativos.

Os senhores farroupilhas e imperialistas preferiam que outros lutassem e morressem por seus ideais. Muito logo, os exércitos republicanos e monarquistas formaram-se com contingentes de peões, nativos e cativos africanos e afro-descendentes libertos.

Quando da guerra, boa parte dos gaúchos livres eram descendentes de nativos guaranis e pampianos, que haviam perdido, para os grandes latifundiários, no século anterior, suas terras ancestrais. Eles acompanhavam seus caudilhos nos combates, como faziam-no tradicionalmente nas lides dos campos.

Churrasco e saque

Não foi o ideal liberal-republicano que levou o gaúcho pobre à guerra. Quando os caudilhos trocavam de lado, sem pudor, os peões faziam o mesmo. Bento Manuel mudou de bandeira diversas vezes, sempre seguido por sua gauchada. Para o peão, o ideário farroupilha significava sobretudo soldo, churrasco e saque.

Quando chamado às armas, o homem livre tinha o direito de substituir-se. Em geral, alforriava um cativo para ocupar seu posto no combate. Arrolavam-se nas tropas republicanas cativos dos inimigos da República e compravam-se trabalhadores escravizados de cidadãos da república para preencher os vazios das tropas.

Os soldados negros que combateram faziam-no obrigados, por preferirem a vida militar à escravidão, por sonharem com liberdade após a luta, jamais obtida. Não houve democracia racial nas tropas farrapas. Soldados negros e brancos marchavam, comiam, dormiam e morriam separados. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos.

A Constituição farroupilha dizia: "A República do Rio Grande é a associação política de todos os cidadãos rio-grandenses". Ou seja, dos "homens livres nascidos no território da República". A República erguia-se sobre a mesma pedra angular do Império: o latifúndio e a escravatura. O índio e o cativo não eram e não seriam cidadãos.

República dos senhores

Os principais chefes farrapos eram ferrenhos escravizadores. Ao ser enviado preso para a Corte, Bento Gonçalves da Silva levou consigo um negro doméstico, para servi-lo. Ao morrer, legou terras, gado e meia centena de trabalhadores escravizados, numa época em que um cativo valia um bom patrimônio.

Os farroupilhas jamais acenaram com a distribuição de terras, aos gaúchos, e com o fim do cativeiro, aos cativos, como fizera Artigas, na Banda Oriental. Os farroupilhas sequer propuseram o fim do tráfico transatlântico de homens. Nas filas farroupilhas, as veleidades emancipacionistas foram facilmente silenciadas e abafadas. Sustentada sobretudo com o sangue do peão sem terra e do negro liberto, a revolta era das elites, para as elites.

Recorda-se sempre que, para abater as armas, os farrapos exigiram, insistentemente, que o Império respeitasse a liberdade dos soldados negros. Nos fatos, temiam que se formasse uma guerrilha negra na província, ou que os combatentes negros homiziassem-se no Uruguai, caso temessem a reescravização. E, nos últimos anos da guerra farrapa, já se pensava na intervenção na Banda Oriental ...

A infâmia de Porongos

Na madrugada de 14 de novembro de 1844, em conluio com Caxias, chefe das forças imperial, David Canabarro, principal general farrapo, entregou os soldados farroupilhas negros ao inimigo, desarmados. No serro de Porongos, foi dizimada a infantaria negra, acelerando a paz entre os amos farroupilhas e imperialistas.

A rendição de Poncho Verde foi acordo de cavalheiros entre senhores. Não havia contradições essenciais entre os chefes imperialistas e republicanos. Os fazendeiros farroupilhas não haviam conseguido impor a separação da província, o Império não manteria o controle sobre ela sem a colaboração dos grandes criadores. Muito logo, os ex-farrapos marchariam, sem pejo, sob a bandeira imperial contra o Uruguai e a Argentina, em defesa da extra-territoriedade de suas imensas fazendas nos departamentos setentrionais da Banda Oriental.

4. A Invenção da Tradição – Império e República Velha

Nas décadas seguintes ao fim da guerra separatista, facções das elites sul-rio-grandenses apropriaram-se da memória farroupilha, adaptando-a aos seus objetivos. Esse processo foi permitido pelo conteúdo nulamente social daquele movimento, onde as classes subalternizadas jamais intervieram em forma autônoma.

No Segundo Reinado [1840-1889], o desenvolvimento da cafeicultura, no Centro Sul, relançou, no Sul, a criação de mulas para o transporte e a produção de charque para os trabalhadores escravizados. A boa conjuntura permitiu às elites pastoris retomaram o poder político regional, através do Partido Liberal, incontestavelmente hegemônico no Rio Grande, de 1866 a 1889.

O Partido Liberal expressava os criadores do meridião que haviam dirigido a revolta de 1835. Devido à importância dos cativos nas grandes fazendas e charqueadas, os liberais sul-rio-grandenses defendiam a escravidão, ao contrário do que faziam no resto do país, onde apoiavam em geral o emancipacionismo. Discutindo a sorte do cativeiro, o grande tribuno liberal Gaspar Silveira Martins declararia amar “mais sua pátria do que o negro”.

Os liberais reivindicaram facilmente a memória farroupilha, que permaneceu propriedade das classes pastoris do meridião, como no passado. Porém, os liberais, agora monarquistas, reivindicando apenas apenas a descentralização dos poderes imperiais, abandonavam duas grandes bandeiras farroupilhas – a separação e a república.

Urbanos e abolicionistas


Em 1878, em Porto Alegre, fundou-se o Clube Republicano “Bento Gonçalves”. A seguir, fez-se o mesmo em outras cidades do interior. Saídos das frágeis classes médias, os primeiros neo-republicanos sulinos desenvolveram ativa agitação abolicionista, com poucos resultados, em província dominada pelos grandes criadores e charqueadores escravistas.

Entretanto, agora, por primeira vez, a memória farroupilha era apropriada por grupos sociais, política e geograficamente estranhos ao movimento de 1835. O mundo urbano e as classes médias jamais haviam sido farroupilhas. Os líderes farrapos abominavam a libertação dos trabalhadores escravizados. Bento Gonçalves morrera como grande escravista. Acelerava-se a manipulação da memória farroupilha.

Em fevereiro de 1882, em Porto Alegre, meia centena de delegados elegeram a comissão organizadora do Partido Republicano Rio-grandense. Logo, o PRR foi controlado por jovens filhos de ricas famílias de criadores, sobretudo do centro e do norte do RS, chegados em boa parte da escola de Direito de São Paulo. Eles defendiam modernização conservadora do Rio Grande.

No início de 1880, em São Paulo, alguns desses universitários – Borges de Medeiros, Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado, etc. – fundaram o Clube 20 de Setembro, para celebrar o republicanismo sulino. Em 1882, a pedido dos seus pares republicanos, o jovem Assis Brasil escreveu sua História da república rio-grandense.

A pátria pequena

Sem ser separatista, o PRR desenvolveu virulenta pregação republicana e federalista. Os jovens jacobinos defendiam a autonomia regional e a diversificação produtiva, para superar a estagnação da economia pastoril-charqueadora. A República Farrapa tornava-se referência da propaganda dos positivistas radicais, adeptos das “pequenas pátrias” de Auguste Comte.

Momentos antes da República, o jovem líder republicano Júlio de Castilhos propôs a celebração do 20 de Setembro. Com o golpe militar anti-monárquico de 15 de novembro de 1889, apoiado primeiro pelo marechal Deodoro da Fonseca, a seguir por Floriano Peixoto, os republicanos sulinos empalmaram o poder regional, institucionalizando a leitura positivistas do passado farroupilha.

Em 14 de julho de 1891, promulgava-se a constituição republicana sulina, cópia quase literal do anteprojeto escrito por Júlio de Castilhos. A primeira constituição sul-rio-grandense determinava que as “insígnias oficiais do Estado” seriam as do "pavilhão tricolor criado pelos revolucionários [...] de 1835”.

Para manterem-se no poder e implementar o novo projeto, os republicanos positivistas vergaram as forças do meridião pastoril, na mais sangrenta guerra civil conhecida Sul. A revolta farrapa foi rusga de namorados, ao lado da carnificina de 1893-5. A Revolução Federalista ceifou mais de dez mil vidas, em uma população de um milhão de habitantes.

Somos todos farrapos

Durante o confronto, os fazendeiros do meridião, herdeiros sociais, políticos e territoriais dos farroupilhas liberais, reunidos sob a nova bandeira federalista, foram acusados de monarquistas e de separatistas pelos castilhistas, republicanos e federalistas extremados. Reinterpretada, a memória farroupilha escorregava das mãos dos grandes fazendeiros para as dos jacobinos do PRR.

Os republicanos positivistas assumiam a herança simbólica da revolta latifundiária-pastoril, que vestiam com nova roupagem. Enfatizando o autonomismo e o republicanismo farrapos, alicerçavam simbolicamente o republicanismo federalista radical defendido pelo PRR através de toda a República Velha [1889-1930].

Na nova versão, a memória farroupilha passava a ser herança de todo sulino, não importando sua origem étnica – negro ou branco –; sua origem social – pobre ou rico –; sua região de nascimento – Campanha, Litoral, Serra, etc. Manipulava-se a história, apresentando o movimento como de toda a população do Rio Grande, contra o Estado central.

O mito da unidade da população, no passado, na luta por ideal único republicano e autonomista, fortalecia a proposta de comunhão de interesses do sul-rio-grandense, no presente, pilastra da ordem republicana autoritária que regeu o Rio Grande até a chamada Revolução de 1930. Nesse processo, a história desvanecia por detrás do mito.

5. A invenção da tradição: o Movimento Tradicionalista Gaúcho

Na República Velha [1889-1930], o Rio Grande foi talvez o Estado mais cioso de sua autonomia federal, assentada em uma economia em boa parte voltada para o mercado interno sulino. Nesses anos, o RS foi o único Estado que jamais conheceu intervenção federal. A independência sul-rio-grandense seria vergada apenas em 1930, por Getúlio Vargas, gaúcho e ex-militante, desde a juventude, do PRR.

A chamada Revolução de 1930 e, sobretudo o golpe do Estado Novo, de fins de 1937, promoveram a propagação autoritária do sentimento de brasilidade. Com ele, buscava-se consolidar cultural e ideologicamente a formação em curso de mercado e de indústria nacionais centrados no eixo Rio-São Paulo. Para tal, foram fortemente reprimidos os sentimentos regionalistas.

Durante a “Proclamação ao Povo Brasileiro”, de 10 de novembro de 1937, Vargas denunciou o “caudilhismo regional” que, segundo o ditador, ameaçava a unidade nacional brasileira. Em gesto simbólico, mandou queimar publicamente as bandeiras regionais, ardendo, entre elas, o estandarte criado por seus antigos mestres, Castilhos e Borges, em 1891!

A seguir, o Estado Novo promoveu a invenção de cultura nacional, como substrato da identidade nacional proposta e imposta. Para isso, o getulismo apoiou fortemente a seleção futebolística nacional; difundiu o carnaval e o samba cariocas; financiou o surgimento de arquitetura moderna brasileira etc.

Brasileiros para o Brasil

Criaram-se e adaptaram-se órgãos e associações destinados a divulgação-imposição do sentimento de amor à Pátria e à Nação, entre eles, a Liga de Defesa Nacional; a Juventude Brasileira; o Departamento de Imprensa e Propaganda; a Hora do Brasil; a Rádio Nacional, etc. As iniciativas contaram com o apoio de grande parte da intelectualidade brasileira e, logicamente, sul-rio-grandense.

A campanha de nacionalização reprimiu os sentimentos regionalistas fortalecidos na República Velha. O separatismo farroupilha passou a ser execrado. Nesses anos, historiadores do Instituto Histórico e Geográfico do RS negaram, de mãos juntas, contra todas as evidências históricas, o independismo farrapo. O mesmo seria também feito, após 1964, por historiadores acadêmicos.

A dominância das relações econômico-sociais nacionais sobre as regionais exigia que o sul-rio-grandense deixasse de ser sobretudo gaúcho, para passar a ser essencialmente brasileiro. Ainda que, em âmbito local, a identidade gaúcha – leitura romantizada da vida pastoril – mantivesse seu caráter dominante sobre as outras identidades sulinas possíveis – escrava, imigrante, operária, etc.

Durante o Estado Novo, a posição econômica e política relativa do Rio Grande recuou em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, que se industrializaram aceleradamente. As elites sulinas aceitaram a subordinação imposta, preocupadas em manter a dominância regional. A industria sulina cresceu em ritmos menores do que a de São Paulo e Rio de Janeiro e se manteve a importância relativa da produção rural e pastoril sulina.

O Novo Tradicionalismo

Com a derrota do nazi-fascismo e a redemocratização conservadora de 1945, a perda de importância relativa do Rio Grande ensejou movimentos culturais regionalistas que reafirmavam a especificidade sulina, em oposição à proposta nacional-centalizador getulista que marginalizara relativamente o Estado sulino.

Em vez de apontarem para o rompimento com um passado que determinara, em última instância, esse atraso, esses movimentos reivindicaram o passado rural-latifundiário arcaico, apresentando-o em forma utópica e idealizada como espécie de Era de Ouro pampeana perdida.

Em 1947, em Porto Alegre, alguns filhos de proprietários rurais fundam movimento regionalista que, apoiados no mito da democracia pastoril e do caráter libertário farroupilha, propunha o culto da ideologia latifundiária-pastoril. O movimento expressava também a rejeição ao plebeísmo democratizante da sociedade urbana-industrial e o fortalecimento político e social das classes trabalhadoras industriais sulinas.

Essa releitura do passado retomava a visão pastoril liberal-federalista do movimento farroupilha, repudiando a interpretação urbana-industrialista do castilhismo. A Guerra Farroupilha surgia apenas como uma expressão, entre outras, da excelência da sociedade pastoril-latifundiária, apontada como síntese da essência do povo gaúcho.

O mito da unidade

Também em 1947, Érico Veríssimo começou a escrever O Continente, primeira parte de sua trilogia regionalista, onde mitifica igualmente a história gaúcha, realizando o elogio póstumo da economia pastoril-latifundiária. Também nesse romance, é mínimo o espaço dedicado às classes subalternizadas no passado – peões pobres e trabalhadores escravizados.

O Tradicionalismo organizou-se em torno dos Centro de Tradições Gaúchas – CTG –, espécie de ludização da fazenda pastoril, onde peões confraternizam sob a presidência do patrão. Para não perder sua funcionalidade, essa interpretação do passado ignorou o papel do trabalhador escravizado no passado sulino, em geral, e na grande fazenda pastoril, em especial.

O Tradicionalismo surgia, em 1947, em plena Guerra Fria, em época em que as classes operárias gaúcha e brasileira começavam a expressar-se no cenário político, em forma tendencialmente autonômica. Ou seja, quando se materializavam nas esfera das relações políticas e das representações culturais os antagonismos sociais profundos que haviam dividido, desde sempre, o Rio Grande.

No contexto de uma sociedade crescentemente industrial, o novo regionalismo construía discurso ideológico que tentava abafar a consciência sobre as contradições sociais, através do mito do destino comum de explorados e exploradores, construído em torno do culto à propriedade pastoril latifundiária e de seu proprietário – o patrão.

Então já hegemônico, o capital industrial sulino apoiou o movimento, solidário com sua essência conservadora, já que a debilidade econômica do latifúndio descartava-o como força política concorrente. Em setembro de 1964, a Assembléia Legislativa institucionalizou a Semana Farroupilha, comemorada de 14 a 20 de setembro, através do Rio Grande do Sul.

6. O Mito Fundador – A Democracia Pastoril

Em 1923, a derrota da insurreição armada assisista assinalou a definitiva submissão política do campo pela cidade no Rio Grande do Sul. Em 1927, desde a ótica do latifúndio pastoril, Salis Jorge Goulart publicou A formação do Rio Grande do Sul, tida como a primeira tentativa de análise estrutural da história sulina.

Em uma época em que a produção colonial-camponesa do norte gaúcho já superava a produção latifundiária-pastoril do meridião, o autor baseava sua explicação da formação sulina nos mitos “da democracia pastoril” e da “produção sem trabalho”, aos quais também procurou dar uma base sociológica sistemática.

Para o jovem ideólogo do latifúndio, o processo de formação sulino diferenciara-se do resto do Brasil que, desde o berço, apoiara-se na despótica exploração do índio e do negro escravizados. Para ele, ao contrário, a formação social sulina teria nascido e se desenvolvido à margem das diferenças e contrdições de classes.

No Sul, a “influência geográfica” das “vastas extensões territoriais” e a “grande quantidade de alimentos fornecidos pelos rebanhos” haviam gerado o latifúndio pastoril, “célula social” do “organismo coletivo” rio-grandense, que se apoiara essencialmente no trabalho solidário e não-compulsório.

Meu patrão, meu amigo

Nessa estranha “terra sem males”, onde o alimento surgia da terra sem exigir o suor humano, com “a subsistência garantida em qualquer parte”, o “trabalhador” jamais se empregara sob o chicote da necessidade, servindo “espontaneamente” ao “patrão, de quem era “mais um amigo do que um subordinado”.

Portanto, tratava-se de uma sociedade nascida sob verdadeira “indiferenciação de classes”, formada essencialmente por “uma classe única, a dos gaúchos” que, fossem “ricos ou pobres”, igualavam-se sempre “pelo garbo dos gestos, pelo amor da guerra, pelo gosto das aventuras”.

Gaúchos preocupados apenas com a “galhardia do pingo, felizes na roda amistosa do chimarrão, entre relatos guerreiros ou façanhas dos dias de rodeio”. Gaúchos que possuiriam, “todos, humildes e potentados, os mesmo hábitos, os mesmos costumes, os mesmos ideais”.

Um mundo em que “patrões e empregados alimentavam-se com o mesmo churrasco e o mesmo chimarrão, cavalgavam os mesmo animais e juntos entregavam-se às mesma fainas dos campos, às mais velozes correrias [...].” Sociedade onde o “empregado” “não criava interesses opostos aos do patrão”, identificava-se “com ele”, tornava-se “seu amigo e, por assim dizer, seu igual.”

Poucos e tarde

Era clara a contradição posta à proposta da democracia pastoril pela importância do cativo no Sul. Na solução do paradoxo que se elevava entre o mito e a história, Salis Goulart simplesmente negou a importante introdução de cativos desde os primórdios sulinos e sua contribuição às atividades criatórias.

Segundo ele, a origem singular do Rio Grande deveria-se ao “pouco” “contingente de escravos” e ao fato de que o “espírito democrático” sulino “se formara antes da grande introdução do elemento negro”, que teria conhecido no Sul condições de vida superiores às do resto do Brasil.

“Julgamos que o nosso espírito democrático já se formara antes da grande introdução do elemento negro. Esse ponto de vista explica o fato de serem, como relatam os historiadores, os escravos melhor tratados aqui [...].” Para ele, o Rio Grande, em geral, e a fazenda pastoril, em especial, seriam sobretudo produto do trabalho livre.

Salis Goulart não inventou nada. No preciso momento em que se consolidava a superação do latifúndio pastoril pela produção colonial e urbana, sistematizou, com inteligência e criatividade, os mitos já existentes da “democracia pastoril” e da “produção pastoril sem trabalho”.

A invenção da memória

As romantizações históricas não são simples resultados de uma conspiração consciente de intelectuais com o objetivo de escamotear as contradições étnico-sociais do passado, para melhor domesticar as classes subalternas do presente. Não são meras estórias construídas por imaginações fantasiosas a partir de elucubrações arbitrárias.

Não é condição suficiente à universalização das apologias que sejam profusamente difundidas pelas elites. Em geral, elas são produtos de uma longa elaboração coletiva das classes que as patrocinam, através da potenciação-generalização de fatos circunstanciais, da ocultação-distorção de fenômenos essenciais, da projeção no passado de expectativas sociais jamais cumpridas.

A apologia pastoril da identidade entre fazendeiros e trabalhadores apoiava-se na ausência de movimentos multitudinários de luta de peões pela terra. No século 19, para estabelecer-se como criador, o gaúcho pobre necessitava de talvez não menos de mil hectares. Realidade que dificultava, naquele então, objetivamente, a luta pela divisão dos latifúndios.

Fenômeno que não impediu o confronto social incessante, expresso no abate selvagem de gado, pelo gaúcho, pela carne e pelo couro, e na sua luta por um naco de terra onde levantar seu rancho. A ojeriza do latifundiário ao sem-terra, nos dias de hoje, repete o horror, no passado, de seu ancestral, do peão em busca de um lugar onde levantar um rancho.

Luta social no campo

As apologias pastoris sobre as condições idílicas de vida dos trabalhadores escravizados sulinos extremam e generalizam para todo o Rio Grande as relativamente melhores condições de trabalho dos cativos campeiros, em relação aos negros das charqueadas, das olariais, dos cortumes, das plantações, no Sul e no resto do Brasil.

A produção pastoril era atividade extensiva semi-natural, que se baseava nas condições naturais das fazendas – pastagens, aguadas etc. – e no esforço humano. Realidade que restringia, e não abolia, a produção crescente de lucro monetário através da intensificação de extração de trabalho excedente. Para o peão e o cativo, o trabalho pastoril era um jogo, apenas se comparado ao trabalho duro na charqueada e na plantação.

Porém, o trabalho escravizado negava, essencialmente, as representações de uma sociedade pastoril edênica. Assim sendo, em verdadeira limpeza étnica, as narrativas apologéticas simplesmente ignoraram, como o fez Salis Goulart, o papel sistêmico do cativo campeiro nas ricas fazendas criatórias.

A Idade de Ouro

As representações sobre a fazenda pastoril no passado sulino foram levantadas sobretudo através da generalização das condições de trabalho das pequenas fazendas de subsistência, exploradas pelo fazendeiro e seus familiares, já que incapaz de comprar um cativo ou assalariar um peão.

A facilidade com que as narrativas sobre a democracia pastoril universalizaram-se no Rio Grande atual, processo que se registra sobretudo através da grande adesão popular aos relatos nativistas, deve-se igualmente a fenômenos recentes.

Estressadas pelas contradições da sociedade capitalista, em forma inconsciente, os segmentos sociais populares e médios, sem forças e canais para concretizarem suas expectativas no presente, voltam-se para o passado, recriando uma imaginária idade de ouro, solidária e fraterna, onde o trabalho alienado era aventura lúdica e criativa.

Manipuladas pela elites, as mitificações do passado assumem sentido social negativo ao escamotear a história real das classes trabalhadoras e a verdadeira essência da formação social sulina, apresentando-as como mundos em que o lobo apascentava o cordeiro, em que o explorador fraternizava com o explorado.

7. O MTG contra o Capitão Gay

O turista mostra apreensivo na alfândega italiana a mala com o valioso cálice etrusco comprado a peso de ouro ao arqueólogo furtivo. Displicente, o policial pouca atenção dá à peça contrafeita rusticamente que repousará sobre centenas de lareiras de incautos e orgulhosos compradores norte-americanos.
Movimento Tradicionalista Gaúcho não busca no passado valores originais que iluminem o presente. Simplesmente apresenta como bens pretéritos visões do presente avelhentadas rusticamente para parecerem desterradas do tempo.

Em Nativismo: um fenômeno social gaúcho, Barbosa Lessa confessou com grande honestidade intelectual como o tradicionalismo procedeu, não raro na “votação”, a “invenção das tradições” gaúchas. “Quando algum elemento faltasse para a nossa ação, nós teríamos de suprir a lacuna de um jeito ou outro.”

Criado por filhos de fazendeiros, o MTG leu o passado com os olhos do latifúndio moderno. Suas interpretações romantizadas da sociedade pastoril-latifundiária monopolizaram o passado, esterilizando a real, rica, contraditória e semi-desconhecida história sul-rio-grandense.

A alegoria do latifúndio feliz dissolveu a diversidade e a contradição do passado. Ela negou espaço histórico ao nativo sulino e ao missioneiro e a suas lutas pela defesa da terra ancestral; ao peão pobre e ao gaúcho vago e quarteiro, na sua oposição ao criador; ao trabalhador escravizado, trabalhador, fujão, quilombola e justiceiro.

Diversidade e Contradição

O tradicionalismo desconheceu a rica e dolorosa trajetória histórica da mulher. A sua pretensa doce submissão ao marido, no passado, teatralizada na submissão da prenda do CTG ao peão e ao patrão, no presente, apresenta imagem idealizada da fazendeira como sinônimo de toda mulher sulina.
Na sociedade patoril-latifundiária, o trabalho era monopólio do pobre e do cativo. O ato produtivo transformador da natureza era signo de inferioridade. Nesse universo mandonista, os fazendeiros sobreviviam impondo-se pela violência aos subalternizados.

A coragem era a qualidade paradigmática senhorial. O gaúcho-fazendeiro devia ser macho, pouco importando sua disposição ao trabalho. Personagem-síntese do gaúcho em O continente, de Érico Veríssimo, o capitão Rodrigo era femeeiro e pouco amigo do trabalho. Mas brilhava pela macheza.

O grande signo da sociedade pastoril não foi a enxada, mas o rebenque. Com ele, o fazendeiro domesticava o animal bravio e, protegido pelo capataz, chegava-se às costas do cativo desobediente e ao rosto do peão impertinente, em castigo físico degradante. Nas cavalgadas urbanas, tradicionalistas expõem valiosos rebenques de cabos de prata.

Nos gestos, falas e canções, os tradicionalistas cultuam a imagem mítica do gaúcho-fazendeiro que defendia seus latifúndios, impondo-se despótico as suas mulheres, peões, cativos e lindeiros. Reconstrução funcional em momento em que milhares de trabalhadores sem terra lutam por um naco de terreno onde possam trabalhar.

Surge o Capitão Gay

Sem maior sucesso, o movimento gay brasileiro tem lançado candidatos a cargos legislativos. Em fins de 2002, procurando a exposição à mídia, imprescindível ao sucesso eleitoral, candidato gay ao legislativo sulino por partido conservador, já derrotado como candidato a vereador em Pelotas, assumiu a personagem do Capitão Gay, em referência aos personagens do humorista Jô Soares e do ficcionista Érico Veríssimo.

A transfiguração possuía múltiplas mensagens e reivindicações, implícitas e explícitas, conscientes e inconscientes. Entre elas, o direito do homossexual masculino de participar de pleno direito do MTG e a proposta de que a destemerosidade pessoal é também qualidade do gay. Idéia que é um quase truísmo. E se alguém dela duvida, que vá separar uma dessas desesperadas e furiosas disputas urbanas de travestis, à navalha, por um pedaço de calçada.

O Capitão Gay trazia também à discussão tabu da história sulina. Ou seja, a sexualidade do peão, trabalhador pastoril do passado, eternamente solteiro, devido à negativa do fazendeiro de ceder naco de terra para arranchar-se com sua china. Em geral, na fazenda, fora o patrão, apenas o capataz casava e procriava, fenômeno que determinou a débil expansão demográfica pastoril do meridião do RS, uma das razões de seu atual atraso.

Reduzido ao celibato, vivendo em latifúndios onde escasseavam as mulheres, o gaúcho concretizou os impulsos erótico-sexuais como pôde. Em geral, se reconhece seus hábitos bestialistas, mantendo-se porém silêncio sobre suas relações homoeróticas, finamente abordadas no conto A intrusa, de Jorge Luis Borges que inspirou a sensível obra cinematográfica homônima de Carlos Christensen [1979].

Gaúcho desinteressado


O francês Nicolau Dreys viveu no Sul em 1817-27. Em relato, anotou que o gaúcho não tinha “mulheres”, mostrando por elas “pouca atração” [sic]. Pesquisas históricas demonstrarão certamente que o gaúcho destemido do passado podia eventualmente ser um gay, por natureza ou necessidade.

Em Porto Alegre, durante o desfile de 20 de Setembro de 2002, ao desfraldar a bandeira arco-íris do movimento homossexual, diante do palanque oficial, o Capitão Gay foi perseguido e surrado a rebenque, como anunciado, por cavalarianos tradicionalistas. Em 7 de setembro, já fora impedido de entrar no mega-acampamento ruralista, promovido anualmente em parque público municipal de Porto Alegre, cidade que jamais se rendeu aos farroupilhas.

Em uma metáfora histórica, os regionalistas perseguiram e golpearam, matreiramente, em grupo, um tradicionalista que ousou enunciar, isolado, sua diversidade, ao igual que os fazendeiros surravam no relho, no passado, protegidos pelos prepostos, o peão e o cativo alçado. A covarde violência do presente espelhou-se e inspirou-se no barbarismo do passado.

Há quase meio ano dos fatos, o cidadão ofendido, em especial, e a população sul-rio-grandense humilhada, em geral, não conheceram a devida reparação mínima através da expulsão pública e notória pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho de seus associados siderados pelo ódio homofóbico.

20 DE SETEMBRO: NADA A COMEMORAR!

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A EDUCAÇÃO CHILENA PEDE SOCORRO

SOLIDARIEDADE AOS ESTUDANTES E TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO
NA LUTA POR UMA REFORMA INTEGRAL DA EDUCAÇÃO CHILENA

O Chile foi um dos primeiros países latino-americanos a implementar e aprofundar o receituário neoliberal em seu sistema de educação pública. Privatização do Ensino Superior, inclusive com cobranças de mensalidades em Universidades Públicas; Municipalização da Educação Fundamental, além de um sistema educacional que se organiza sobre as bases da Constituição de 1981, promulgada no Governo Militar do Ditador Augusto Pinochet, são algumas das características perversas que circundam a organização da educação chilena.

Neste ano, um amplo processo democrático que envolveu a base dos estudantes secundaristas, universitários e trabalhadores da educação fez emergir uma proposta de REFORMA INTEGRAL DA EDUCAÇÃO CHILENA que busca estabelecer as bases da educação como um direito social e humano universal. Entre as principais bandeiras levantadas encontram-se a defesa de uma educação pluralista, gratuita e de qualidade. Apontando para a necessidade imperativa de uma Reforma Constitucional que elimine com a municipalização da educação básica, que crie uma nova concepção de financiamento público da educação em seus diferentes níveis, investindo em transporte escolar e infra-estrutura, além da valorização dos professores. Tudo isso baseado em uma concepção democrática que aprofunde os mecanismos de participação dos estudantes e da comunidade escolar.

No que diz respeito a Universidade, as demandas pelo aumento das fontes de financiamento, por um novo sistema de acesso igualitário, com elevação do suporte destinado a assistência estudantil, além da inclusão dos povos originários são mudanças almejadas no sentido de construção de um outro modelo de Universidade Pública que esteja em consonante com as aspirações por justiça social do povo chileno.

As mobilizações que vem ocorrendo no Chile nos últimos meses, colocam em crise o governo direitista de Sebastián Piñera, que não tem a minima preocupação em resolver e atender as demandas dos estudantes, trabalhadores em educação e comunidade escolar. A sua resposta tem sido a repressão aos legítimos movimentos e mobilizações ocorridas por todo o país, que vem se intensificando com a adesão cada vez maior da população.

No dia 4 de agosto, milhares foram as ruas protestar e levantar a bandeira da Reforma Educacional. A resposta do governo foi a implantação de um estado de sítio, proibindo manifestações nas ruas do país, o que resultou em 874 manifestantes presos, além de vários jovens feridos pela repressão policial.

A União da Juventude Comunista se solidariza com a luta dos estudantes, dos trabalhadores em educação e do povo chileno por uma educação que responda aos anseios por justiça social, democracia e igualdade, que tem se manifestado nas imensas mobilizações em curso no país.

Conclamamos todas as organizações estudantis e juvenis de caráter progressista no Brasil para a construção de um grande ato de solidariedade de caráter nacional a ser realizado em frente a embaixada e consulados chilenos espalhados pelo país.

Toda solidariedade aos estudantes da Coordenação Nacional dos Estudantes Secundaristas (CONES), da Confederação dos Estudantes do Chile (CONFECH) e aos trabalhadores em educação chilenos!

Pela construção da Educação e da Universidade Popular em Nossa América!

Total repúdio ao Governo ditatorial de Sebastián Piñera!

UJC Brasil

terça-feira, 13 de setembro de 2011

REVOLUTION + LOVE

"O verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor"
Che Guevara


Lindo demais para deixar de ser postado aqui!
Sem mais comentários (desnecessários!)

domingo, 11 de setembro de 2011

NOTA DA UJC SANTA MARIA SOBRE A OCUPAÇÃO DA UFSM

Diante da intransigência do reitor que tenta acabar com a ocupação pelo esgotamento das forças do movimento é necessário intensificar a unidade e a mobilização para alcançar o objetivo principal do MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO DA REITORIA DA UFSM que é o atendimento da pauta de reivindicações.

Esta já é a ocupação mais longa da história da Reitoria da UFSM e é importante ressaltar que isso é resultado do modelo de universidade imposto pelo Banco Mundial através do Bloco Conservador gestor de estado de turno, mais precisamente através do MEC, que impôs contra o movimento estudantil e sindical uma contra-reforma universitária, mais conhecida como REUNI. Lembremos da ocupação de 2007, quando da implementação por decreto do REUNI, esta ocupação de 2011 tendo como pano de fundo uma onda de ocupações nacionais, como UFF, UEM, UFSC, UFPR etc. é parte do mesmo processo que desencadeado pelo REUNI.

O MOVIMENTO DE OCUPAÇÃO sairá vitorioso, mostrando mais uma vez que a única linguagem que o poder estabelecido entende é a mobilização, é "povo na rua". Para garantir esta vitória é fundamental a manutenção da unidade e da mobilização.

Chamamos mais uma vez os estudantes à intensificação da mobilização, especialmente na segunda-feira para pressionar o CONSUN.

UJC SANTA MARIA

A matemática macabra do 11 de setembro

MARCO AURÉLIO WEISSHEIMER

A resposta dos EUA ao ataque contra o World Trade Center engendrou duas novas guerras e uma contabilidade macabra. Para vingar as mais de 2.900 vítimas do ataque, algumas centenas de milhares de pessoas foram mortas. Para cada vítima do 11 de setembro, algumas dezenas (na estatística mais conservadora) ou centenas de pessoas perderam suas vidas. Mas essa história não se resume a mortes. A invasão do Iraque rendeu bilhões de dólares a empresas norteamericanas. Essa matemática macabra aparece também no 11 de setembro de 1973. O golpe de Pinochet provocou 40 mil vítimas e gordos lucros para os amigos do ditador e para ele próprio: US$ 27 milhões, só em contas secretas.


O mundo se tornou um lugar mais seguro, dez anos depois dos atentados de 11 de setembro e da “guerra ao terror” promovida pelos Estados Unidos para se vingar do ataque? A resposta de Washington ao ataque contra o World Trade Center e o Pentágono engendrou duas novas guerras – no Iraque e no Afeganistão – e uma contabilidade macabra. Para vingar as mais de 2.900 vítimas do ataque, mais de 900 mil pessoas já teriam perdido suas vidas até hoje. Os números são do site Unknown News, que fornece uma estatística detalhada do número de mortos nas guerras nos dois países, distinguindo vítimas civis de militares. A organização Iraq Body Count, que usa uma metodologia diferente, tem uma estatística mais conservadora em relação ao Iraque: 111.937 civis mortos somente no Iraque.

Seja como for, a matemática da vingança é assustadora: para cada vítima do 11 de setembro, algumas dezenas (na estatística mais conservadora) ou centenas de pessoas perderam suas vidas. Em qualquer um dos casos, a reação aos atentados supera de longe a prática adotada pelo exército nazista nos territórios ocupados durante a Segunda Guerra Mundial: executar dez civis para cada soldado alemão morto. Na madrugada do dia 2 de maio, quando anunciou oficialmente que Osama Bin Laden tinha sido morto, no Paquistão, por um comando especial dos Estados Unidos, o presidente Barack Obama afirmou que a justiça tinha sido feita. O conceito de justiça aplicado aqui torna a Lei do Talião um instrumento conservadora. As palavras do presidente Obama foram as seguintes:

"Foi feita justiça. Nesta noite, tenho condições de dizer aos americanos e ao mundo que os Estados Unidos conduziram uma operação que matou Osama Bin Laden, o líder da Al Qaeda e terrorista responsável pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças."

O conceito de justiça usado por Obama autoriza, portanto, a que iraquianos e afegãos lancem ataques contra os responsáveis pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças. E provoquem outras milhares de mortes. E assim por diante até que não haja mais ninguém para ser morto. A superação da Lei do Talião, cabe lembrar, foi considerada um avanço civilizatório justamente por colocar um fim neste ciclo perpétuo de morte e vingança. A ideia é que a justiça tem que ser um pouco mais do que isso.

Nem tudo é dor e sofrimento

Mas a história dos dez anos do 11 de setembro não se resume a mortes, dores e sofrimentos. Há a história dos lucros também. Gordos lucros. Uma ótima crônica dessa história é o documentário “Iraque à venda. Os lucros da guerra”, de Robert Greenwald (2006), que mostra como a invasão do Iraque deu lugar à guerra mais privatizada da história: serviços de alimentação, escritório, lavanderia, transporte, segurança privada, engenharia, construção, logística, treinamento policial, vigilância aérea...a lista é longa. O segundo maior contingente de soldados, após as tropas do exército dos EUA, foi formado por 20 mil militares privados. Greenwald baseia-se nas investigações realizadas pelo deputado Henry Waxman que dirigiu uma Comissão de Investigação sobre o gasto público no Iraque.

Parte dessa história é bem conhecida. A Halliburton, ligada ao então vice-presidente Dick Cheney, recebeu cerca de US$ 13,6 bilhões para “trabalhos de reconstrução e apoio às tropas. A Parsons ganhou US$ 5,3 bilhões em sérvios de engenharia e construção. A Dyn Corp. faturou US$ 1,9 bilhões com o treinamento de policias. A Blackwater abocanhou US$ 21 milhões, somente com o serviço de segurança privada do então “pró-Cônsul” dos EUA no Iraque, Paul Bremer. Essa lista também é extensa e os números reais envolvidos nestes negócios até hoje não são bem conhecidos. A indústria da “reconstrução” do Iraque foi alimentada com muito sangue, de várias nacionalidades. Os soldados norte-americanos entraram com sua quota. Até 1° de setembro deste ano, o número de vítimas fatais entre os militares dos EUA é quase o dobro do de vítimas do 11 de setembro: 4.474. Somando os soldados mortos no Afeganistão, esse número chega a 6.200.

A matemática macabra envolvendo o 11 de setembro e os Estados Unidos manifesta-se mais uma vez quando voltamos a 1973, quando Washington apoiou ativamente o golpe militar que derrubou e assassinou o presidente do Chile, Salvador Allende. Em agosto deste ano, o governo chileno anunciou uma nova estatística de vítimas da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990): entre vítimas de tortura, desaparecidos e mortos, 40 mil pessoas, 14 vezes mais do que o número de vítimas dos atentados de 11 de setembro de 2001. Relembrando as palavras do presidente Obama e seu peculiar conceito de justiça, os chilenos estariam autorizados a caçar e matar os responsáveis pelo assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças.

Assim como no Iraque, nem tudo foi morte, dor e sofrimento na ditadura chilena. Com a chancela da Casa Branca e a inspiração do economista Milton Friedman e seus Chicago Boy’s, Pinochet garantiu gordos lucros para seus aliados e para si mesmo também. Investigadores internacionais revelaram, em 2004, que Pinochet movimentava, desde 1994, contas secretas em bancos do exterior no valor de até US$ 27 milhões. Segundo um relatório de uma comissão do Senado dos EUA, divulgado em 2005, Pinochet manteve elos profundos com organismos financeiros norte-americanos, como o Riggs Bank, uma instituição de Washington, além de outras oito que operavam nos EUA e em outros países. Segundo o mesmo relatório, o Riggs Bank e o Citigroup mantiveram laços com o ditador chileno durante duas décadas pelo menos. Pinochet, amigos e familiares mantiveram pelo menos US$ 9 milhões em contas secretas nestes bancos.

Em 2006, o general Manuel Contreras, que chefiou a Dina, polícia secreta chilena, durante a ditadura, acusou Pinochet e o filho deste, Marco Antonio, de envolvimento na produção clandestina de armas químicas e biológicas e no tráfico de cocaína. Segundo Contreras, boa parte da fortuna de Pinochet veio daí.

Liberdade, Justiça, Segurança: essas foram algumas das principais palavras que justificaram essas políticas. O modelo imposto por Pinochet no Chile era apontado como modelo para a América Latina. Os Estados Unidos seguem se apresentando como guardiões da liberdade e da democracia. E pessoas seguem sendo mortas diariamente no Iraque e no Afeganistão para saciar uma sede que há muito tempo deixou de ser de vingança.

O texto "A matemática macabra do 11 de setembro" foi originalmente publicado no site Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18435