Os nove parecem estar posando para uma foto de formatura, ou para uma reunião de grêmio literário do interior. Há um tom solene nos rostos. Eles estão de terno e encaram fixamente a câmara. Têm entre 23 e 33 anos. Acabaram de realizar uma reunião, que depois se mostrou histórica, dividida entre os dois lados da baía de Guanabara, nos dias 25, 26 e 27 de março de 1922, há exatos 90 anos. Desse pequeno encontro, registrado em uma única foto conhecida, resultou a fundação da mais importante agremiação política da esquerda brasileira por várias décadas: o Partido Comunista do Brasil (PCB). A partir de agosto de 1961, em uma tentativa de obtenção de seu registro legal, seu nome mudaria para Partido Comunista Brasileiro.
Cristiano Cordeiro (1895-1987), um dos nove delegados, vindos de vários pontos do País, assim se lembraria daqueles dias:
"As reuniões foram duas nos sindicatos dos Alfaiates e Metalúrgicos, no Rio, e duas num sobrado das tias de Astrojildo Pereira (outro dos participantes), em Niterói. Éramos apenas nove, representando grupos comunistas de vários estados brasileiros. Secretariei os encontros, onde foram lidos os ‘21 pontos de Moscou’, discutida sua aplicação à nossa realidade, estudada a criação de comitês em cidades importantes e vista a necessidade de se criar um jornal do partido. Na sessão de encerramento, para não espantar as tias de Astrojildo, cantamos bem baixinho a ‘Internacional’".
Período fértil em rebeldias
A referência aos "21 pontos de Moscou" não é gratuita. A criação do PCB foi o desaguadouro quase natural das particularidades da situação brasileira, aliadas ao formidável impulso que a Revolução de Outubro de 1917 deu aos movimentos libertários em todo o mundo. Aqueles pontos versavam sobre as condições necessárias para a admissão dos partidos à III Internacional Comunista, organização capitaneada pelo Partido Comunista da Rússia (PCR).
Quanto à situação nacional, ela era explosiva fértil. O País enfrentava desde o início do século XX um acirramento de lutas sociais, com greves e rebeliões em vários estados. No entanto, faltava a elas um vínculo aglutinador que desse rumo nacional a uma série de iniciativas fragmentadas em várias regiões, com destaque para a Greve de 1917, que parou São Paulo por vários dias.
O movimento anarquista, que estivera à testa de inúmeras dessas manifestações, já não conseguia responder às demandas de um operariado urbano que, apesar de reduzido numericamente, procurava vencer uma situação de inexistência de direitos e condições de vida extremamente precárias.
O ano de 1922 foi particularmente explosivo. As camadas médias exibiram sua rebeldia através do movimento tenentista, com ações violentas especialmente no Rio de Janeiro. Em São Paulo, alguns enfants terribles extremamente talentosos, agregados à oligarquia cafeeira, marcaram a vida cultural com a "Semana de Arte Moderna".
Erros e acertos
Apesar da abnegação de seus militantes, em seus anos iniciais, o PCB era um reduzido agrupamento com pouca presença no movimento popular. A repressão feroz do governo Arthur Bernardes (1922-1926) em muito contribuiu para isso. Somente no início dos anos 1930, quando o Partido recebe a adesão de Luis Carlos Prestes (1898-1990), já então uma figura lendária, egressa da Coluna, o Partido passa a ter voz expressiva no cenário político.
A história do PCB nos quarenta anos seguintes entrelaça-se com a história do movimento operário e popular no Brasil. Aglutinando lideranças populares, artistas, intelectuais, militares, estudantes etc. e vivendo a maior parte de sua longa existência sob os rigores da clandestinidade, o Partido cometeu erros e acertos que tolheram muito de sua capacidade de ação.
Os equívocos que resultaram no desastre do levante de novembro de 1935 marcaram toda uma geração de comunistas brasileiros. Nenhum partido brasileiro teve quase toda sua direção encarcerada durante praticamente uma década.
A necessidade da realização de um sólido trabalho de massas passou a ser quase que obsessivo nos anos seguintes. A campanha pelo fim da ditadura getulista, as eleições para a Constituinte de 1946, a jornada do ‘Petróleo é nosso, as grandes greves do início dos anos 1950, a luta pelas reformas de base, dentre tantas outras, tiveram no PCB seu núcleo definidor.
Lenta agonia
A luta pela conquista de espaços institucionais, que o tirassem da clandestinidade, da qual só se livrou por curtos 18 meses (1946-47), acabou gerando uma linha por vezes errática.
A situação internacional – da Guerra Fria às mudanças realizadas na União Soviética a partir de 1956 – também atingiu em cheio a legenda. Equívocos e cisões – o mais importante deles, em 1962, deu origem ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB) - deixaram o partidão, como era conhecido, despreparado para enfrentar a conjuntura que resultou no golpe de 1964.
A partir daí, acentuam-se as dissidências e fragmentações, que conduziram a agremiação a uma lenta agonia e perda de iniciativa política. No início dos anos 1990, com a ofensiva globalizante e a queda dos regimes do leste europeu, o Partido praticamente se extingue. Três correntes reivindicam sua trajetória: o PCdoB, com significativa influência política, o Partido Popular Socialista (PPS) e o pequeno PCB. A disputa por sua herança mostra a longa e profunda legitimidade que os comunistas alcançaram na vida nacional.
Nesta segunda década do século XXI, quando a economia capitalista enfrenta uma grave crise e em que as ambigüidades e os limites do governo Dilma afloram de diversas maneiras, vale a pena lançar um olhar em direção àqueles brasileiros reunidos num prosaico sobrado de Niterói há nove décadas. E vale examinar que a luta pelo socialismo alcança inúmeros caminhos, sem desprezar coragem, combatividade e uma escolha clara sobre o lado a se defender.
O texto "PCB, noventa, noves fora, o que fica?" foi originalmente publicado no site Carta Maior: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19823
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