segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A comida não pode ser barata? Uma resposta cúmplice aponta a causa dessa injustiça

ANTONIO CECHIN E JACQUES TÁVORA ALFONSIN

“A sociedade tem de aceitar que a época da comida barata acabou.” Assim, o presidente da Farsul resumiu sua opinião sobre o preço da comida, na edição de sexta-feira, 17, do jornal Zero Hora.

Para quem ainda passa fome no Brasil, é difícil recordar quando, no passado, a comida foi barata. Em todo o caso, tratando aquela opinião de uma necessidade vital das pessoas, como é a de se alimentar, é conveniente analisar-se o dito no que ele pode revelar sobre as causas de uma injustiça social como essa, pois, pelo jeito, não temos saída e estamos condenados a aceitá-la.

Segundo essa maneira de pensar, cabe uma comparação. Entre o possível prejuízo que a fração de empresários representada pela tal liderança possa ter na venda do indispensável à vida das pessoas, e o que essas possam sofrer por não poderem pagar o que lhes mata a fome, quem não pode sair perdendo é o dono do capital (nem sempre identificado, em tudo, com o “produtor rural”, a economia familiar que o comprove), pois, em todo o contexto explicativo da entrevista, a “comida barata” aparece como prejuízo certo desse personagem.

Como o mercado, onde esse capital se alimenta de dinheiro e não de comida, é um ente abstrato, de humor desconhecido, refletido em expressões tão grandiloqüentes quanto aleatórias do tipo “crise da economia mundial”, “excesso de demanda”, “defesa da liberdade de iniciativa econômica”, “globalização”, as causas dos perversos efeitos da previsão feita pelo presidente da Farsul geralmente ficam isentas de qualquer investigação sancionatória, inclusive do ponto de vista jurídico. A “mão invisível” (Adam Smith) dos seus ciclos econômicos de crise, exploração da natureza e das gentes, trata de imunizá-lo.

Algumas mãos visíveis de defesa desse tipo de irresponsabilidade, todavia, podem ser identificadas, como prova a afirmação categórica do ministro da agricultura, publicada na mesma edição de ZH, segundo a qual “índices de produtividade é assunto encerrado.”

Ali aparece, novamente, o porque de se encerrar esse assunto: “Quem deve definir o que, como e quando o produtor brasileiro vai produzir é o mercado, a visão que ele tem de oportunidades de negócios, perspectivas de preço, demanda do mercado interno e internacional. Não pode ser um ato autoritário, de cima para baixo, dizendo que tem de produzir com tais índices de produtividade. Não é assim que se faz”.

Entre o que a sociedade, portanto, “tem de aceitar” como diz o presidente da Farsul, e a forma como essa aceitação deve ser feita (“assunto encerrado”, “não é assim que se faz”…), como diz o ministro da Agricultura, o Estado, a democracia, os Poderes Públicos, o ordenamento jurídico não têm que dar palpite nem se meter.

A lei e o direito, assim, não têm voz nenhuma aí. Quem deve mandar sobre o que deve se produzir “é o mercado”, “as oportunidades de negócios”, as “perspectivas de preços”, somente o dinheiro, em última análise. Poucas vezes se reconheceu, com tanta clareza e pelas vozes dos seus mais fiéis representes, onde se encontra, efetivamente, o “ato autoritário, de cima para baixo”, a que faz referência o ministro da agricultura. Ele desce do mercado e é indiscutível, fatal, como ato caracteristico de toda ditadura. A/o pobre faminta/o que se submeta a esse ente-ídolo capaz de ditar o que, como, quando e quanto ele deve comer. Não é por acaso, portanto, que acabe morrendo de fome. O Estado e a democracia prossigam fingindo terem o poder de garantir a vida e a liberdade do povo pobre.

Haja fome, então, para suportar uma opressão a esse nível. Ela comprova a maior contradição presente em todo o nosso sistema econômico. Justamente quando a produção rural conquista quantidades de alimento mais do que suficientes para alimentar o povo todo, o chamado “preço de mercado” cai a níveis tão baixos, que somente a retenção dessas quantidades consegue cobrir o custo da produção, seja o real, seja o inventado por quem sabe manipular dados a favor do seu lucro. Aí o Estado deixa de ser o vilão e passa a ser a solução…

Não é preciso ser economista para compreender onde tudo isso vai dar. Esse ar de fatalidade, no qual se inspiram as opiniões das referidas lideranças, não é igual ao do clima, corriqueiramente invocado em favor das alegadas dificuldades pelas quais passam os seus liderados. Que a freqüência desse repetido queixume já alcançou status de segunda natureza, isso não dá para negar, pois não há ano em que ele não repita o seu choro.

Quanto cinismo e hipocrisia se refletem, pois, quando o respeito à lei, especialmente a da segurança nacional, é invocado com veemência, por essas lideranças, sempre que o povo necessitado de casa e comida toma em suas próprias mãos a iniciativa de proclamar que o tal respeito só vale, de fato e materialmente, em favor de minorias historicamente protegidas por uma ideologia sem outras referências que não as da propriedade e as do mercado. Se o destinatário de algumas vantagens previstas em lei é a/o pobre, elas ignoram e desprezam a lei. Essa exige, por exemplo, o cumprimento da função sal da propriedade, “em prol do bem coletivo”, das “necessidades dos cidadãos”, da “erradicação da pobreza”, de “direitos humanos fundamentais”, expressões que não faltam na Constituição Federal, no Estatuto da Terra e no Estatuto da Cidade, entre outras regras jurídicas. Aí, o seu efeito material, concreto, é igual a zero, já que o mercado, pelo menos o refletido nas opiniões publicadas pela ZH, não precisa se preocupar com isso.

O direito à alimentação, por exemplo, somente entrou expressamente na Constituição em fevereiro deste ano (Emenda 64), como se a satisfação de uma necessidade vital como essa, de tão desrespeitada no país, tivesse necessidade de se proclamar em lei, para ser reconhecida como direito. Muito antes, os tratados internacionais que o Brasil assinou, como o dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966, já vinculavam o nosso país, inclusive, à reforma agrária capaz de, no mínimo, atenuar as danosas conseqüências da comida cara.

Os conceitos de “soberania alimentar” e de “segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a direitos fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que plantar, colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta de acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo presidente da Farsul e pelo ministro da Agricultura. O primeiro “tem de aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos como os que as suas opiniões desconsideram. O “realismo econômico” da comida cara, sem outro remédio, previsto por eles, se está sendo pelo menos mitigado nos seus danosos efeitos sociais, isso não se deveu ao mercado, lá erguido à panacéia dos nossos males, mas sim aos assentamentos gerados pela reforma agrária, pelo menos os que deram certo justamente por obedecer à outra lógica que não a exclusiva do mercado. Não foi este também que presidiu a política pública de implantação do Fome Zero e do Bolsa Família.

Se existem mais brasileiros saciados, hoje, não devem isso ao mercado. Felizmente, há uma outra economia em curso, familiar, solidária, cooperativa, diferente dessa que acumula na mão de poucos o que falta na mesa de muitos. É por isso que a reforma agrária, esses assentamentos e essas políticas públicas recebem críticas tão ácidas das lideranças latifundiárias e daquelas que, no exercício do Poder Público, lhes são fiéis. “Paternalismos oficiais”, “favelas rurais” costumam aparecer sustentando essas críticas. É que o ídolo ao pé do qual elas se ajoelham, rezam e acendem velas diárias de adoração, não aceita outra forma de produção, distribuição e partilha dos bens indispensáveis à vida das pessoas que não passe pelo seu poder de exclusão, medido de acordo com a capacidade de pagar que cada uma dessas tenha alcançado.

Aquela outra economia sabe que o dinheiro não se come, nem impõe um “ter de aceitar” ou um “assunto encerrado” prepotentes e anti-democráticos como os publicados pela ZH do dia 17. Os direitos e os interesses alheios não lhe são estranhos ou, até, hostis. O que ela mais deseja é a suficiência para todas/os e não somente para um pequeno grupo. Está a serviço de uma justiça social capaz de produzir comida e mesa fartas onde ninguém se assente constrangido pela dor de saber-se estranho à comum união.

O texto A comida não pode ser barata? Uma resposta cúmplice aponta a causa dessa injustiça foi originalmente publicado no blog RS URGENTEhttp://rsurgente.opsblog.org/2010/12/18/a-comida-nao-pode-ser-barata-uma-resposta-cumplice-aponta-a-causa-dessa-injustica/

Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010

JAMES PETRAS

Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado.

Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.

"Bem", pensou José, "temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas". Mas José preocupava-se, "queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes". Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.

Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.

José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.

Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebé. A sua hora estava a chegar.

"Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças", implorou.

José, que acreditava no "olho por olho" dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.

E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.

O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebé se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.

Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.

Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. "Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar".

José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, "Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito as mulheres grávidas".

O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: "És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes".

Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, "Para, José, ou ele dispara e o nosso bebé vai nascer órfão".

Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, "Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas".

"Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?" respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.

"Levanta o vestido e o que tens por baixo", ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.

José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram frequentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.

Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, "José, sinto que o bebé está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa".

José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. "Quem és tu? O que é que queres?"

"Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebé". Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.

"Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe", disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até à carroça.

A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contracções estavam a ser mais frequentes e intensas.

A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.

E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.

Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebé e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.

E os pastores ficaram estupefactos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?

As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.

Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão nocturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: "Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas".

Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram camiões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altifalante disparou, "Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos". Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, "A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus".

O texto Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010 foi originalmente publicado em http://petras.lahaine.org/articulo.php?p=1831&more=1&c=1. Tradução de Margarida Ferreira.

Derrotar Dilma nas ruas

JOSÉ ARBEX JR.
Jornalista

Exatamente como aconteceu no dia 3 de outubro, 36 milhões de eleitores (número equivalente 27% do universo de 136 milhões de brasileiros qualificados para votar) preferiram não depositar o seu voto em qualquer candidato à presidência. Esse é, de longe, o dado mais significativo de segundo turno das eleições: 4,7 milhões anularam o voto, 2,5 milhões votaram em branco e 29 milhões se abstiveram. Dilma Rousseff foi eleita, portanto com apenas 41% do total de votos possíveis, ao passo que José Serra obteve 32% (isto é, ficou míseros 5 pontos percentuais acima dos votos não válidos e das abstenções).

Para um país onde o voto é obrigatório, os resultados revelam, no mínimo, que boa parte de população não deposita qualquer confiança ou entusiasmo nos dois candidatos. Os votos em Dilma tampouco demonstraram uma suposta força de “esquerda a direita” como alardeiam supostas lideranças da mais suposta ainda “esquerda”, já que boa parte dos votos foi carreada pela máquina coronelista do PMDB, com a preciosa ajuda de tradicionais esquerdistas do quilate de José Sarney e Michel Temer, e outra parte, ainda foi depositada pelo subproletariado cooptado pela distribuição das migalhas oriundas do assistencialismo estatal.

Os votos em Dilma não refletem sequer o apoio do Partido dos Trabalhadores à sua candidatura. Dilma foi a “candidata do lula”, não do PT a presidência do país. Ela filiou—se ao PT apenas em 2001, não tem base partidária e foi guindada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva à chefia da casa civil após a queda de José Dirceu, em 2005, em detrimento da opção por petistas “históricos”. Da mesma forma, Lula acertou “pelo alto” um acordo com o PMDB, assegurando-lhe o cargo de vice de Dilma (Michel Temer) e o apoio do PT à candidatura aos governos do Maranhão (Roseana Sarney) e Minas Gerais (Hélio Costa).

Os conflitos provocados no PT por essas medidas foram públicos, assim como as defecções que o partido sofreu a partir de 2003, incluindo a de petistas “emblemáticos” como Heloísa Helena, Marina Silva e Ivan Valente, entre outros. A capacidade de Lula impor a sua vontade ai PT decorre de uma combinação de múltiplus fatores: alianças internas entre grupos que formam a “máquina” do partido, controladas diretamente por ele; uma política de cooptação de militantes guinados a cargos públicos bem remunerados e o mais importante: o fortalecimento do “lulismo” descolado do PT.

O “lulismo” – do qual Dilma tornou-se imagem refratada – é, provavelmente, o fenômeno político e social mais importante e nefasto do cenário conjuntural brasileiro contemporâneo. Começou a adquirir uma forma nítida e concreta a partir de 1998, quando Lula, antes identificado com as grande greves do ABC, passou a se apresentar como “lulinha paz e amor” e a cortejar o voto do subproletariado – constituído por trabalhadores informais, sem carteira assinada, dispostos a aceitar salários miseráveis e condições indignas de trabalho -, com um discurso assistencialista (centrando no programa Fome Zero), ao mesmo tempo em que acenava para os banqueiros a disposição de aceitar as regras do jogo financeiro, compromisso consagrado pela “carta aos Brasileiros”,em 2002.

Em sua primeira gestão, Lula criou uma série de programas sociais destinados a atrair o subproletariado. No final de 2003, lançou o Programa Bolsa Familia (PBF), que hoje atende a 12 milhões de lares. Entre os milhões daqueles que votaram em Lula pela primeira vez em 2006, e os que elegeram Dilma agora, a maioria era composta por nordestinos de renda baixa, o público alvo por excelência do PBF. Combinado com o PBF, Lula manteve o controle da inflação, garantiu um aumento menor do preço da cesta básica nas regiões mais pobres, assegurou um ganho real de 25% no salário mínimo, criou o “crédito consignado” e outras medidas destinadas a expandir o financiamento popular. Além disso, lançou uma série de programas que beneficiam setores tradicionalmente marginalizados, como o Luz para Todos (de eletrificação rural).

Se a “distribuição real de renda” é cantada em verso e prosa pela “esquerda” lulista como “prova” de que seu governo tem “uma lado progressista”, a contrapartida é o fato de que Lula passou a governar com o apoio direto do capital financeiro, cujos lucros, sem precedentes na história do país, somam dezenas de vezes o total dos investimentos em programas sociais. A contrapartida é o apaziguamento de uma ampla camada conservadora da classe média que quer a “ordem” e a estabilidade, e o amor do subproletario, que vê no presidente um “igual” que “chegou lá” e está “ajeitando as coisas” para os mais pobres. Seu governo incorporou plenamente a noção conservadora que dispensa a organização da classe trabalhadora, pois um Messias conduz as reformas.

Mas para fazer isso Lula teve que “congelar”- principalmente, por meio da cooptação – os movimentos sociais, as principais lideranças sindicais do país e “rifar” o seu próprio partido, o PT, que hoje existe apenas como sombra do poder pessoal de um presidente que se coloca acima de todos os partidos. O “lulismo” significou, portanto, o abandono dos perspectivas de esquerda que estiveram na base da fundação do PT, as quais pressupunham uma elevação da consciência de classe por meio da luta política. Houve , ao contrario, um rebaixamento da consciência. Por essa razão é que o escândalo do “mensalão”, em 2005, não impediu a reeleição de Lula: ele tinha o apoio de uma camada da sociedade que não lê jornais e que não se sentiu afetada. Por esse mesmo motivo, não teve repercussões mais desastrosas as revelações. Às vésperas do primeiro turno de 2010, das maracutaias envolvendo Erenice Guerra, amiga intima de Dilma e sua substituta na casa civil.

O governo Dilma – o Lula do mundo bizarro – será, necessariamente, muito pior e mais caótico. Lula, ao menos, tem brilho próprio, controla a máquina petista e coloca-se acima da disputa entre as várias facções dos grupos burgueses (negocia, costura acordos e concilia com todos eles, e ainda faz a ponte com o senhores do Império). Dilma Roussef não é nada disso. Ela deve sua eleição a Lula, sem ter o seu carisma nem base organizada para sustentar o seu governo. Começa como refém do PMDB no congresso e comprometida até o pescoço com um programa de governo que significa a manutenção da total subordinação ao capital financeiro.

A única perspectiva real que sobre à esquerda brasileira é romper com a paralisia que a marcou durante os oito anos de Lula e passar à oposição ativa, mais ou menos como propunha a fórmula lançada pelo comitê central do PCB, logo após o primeiro turno: “Derrotar Serra nas urnas e depois Dilma nas ruas.” A primeira parte já se cumpriu.

O texto Derrotar Dilma nas ruas foi originalmente publicado na revista Caros Amigos de novembro de 2010, podendo ser encontrado na sua versão on linehttp://carosamigos.terra.com.br/index/index.php?option=com_content&view=article&id=1237:derrotar-dilma-nas-ruas&catid=143:edicao-164

domingo, 5 de dezembro de 2010

Pronunciamento do Partido Comunista Brasileiro (PCB) ao XII Encontro Internacional de Partidos Comunistas e Operários

África do Sul, 3 a 5 de dezembro de 2010

Aos camaradas representantes dos partidos comunistas e operários do mundo

Vivemos um momento extremamente difícil e, ao mesmo tempo, intensamente rico da luta de classes. A crise econômica mundial, hoje presente em quase todo o mundo, uma crise de acumulação e de superprodução, do sistema capitalista como um todo, reafirmou a fragilidade estrutural deste sistema, sua natureza centralizadora e seu caráter excludente. As políticas propostas para a superação da crise – centradas no corte de gastos públicos, na redução de salários e na continuidade da retirada de direitos dos trabalhadores – têm caráter inconsistente e contraditório e contribuem para agravá-la mais ainda.

Há muitas conseqüências da crise que mudam o quadro global e que devem ser levadas em conta: cai mais ainda a centralidade da economia norteamericana como “locomotiva mundial”, instala-se uma guerra cambial entre os principais pólos mundiais. O mais importante é que há, em vários países, uma retomada das mobilizações de trabalhadores, seja na defesa de seus direitos, como em Portugal, na França, na Grécia ou em outros países, com ações organizadas contra o aumento do desemprego e as medidas anticrise tomadas pelos governos.

No Brasil, temos uma consolidação de um tipo de democracia burguesa altamente excludente, com barreiras fortes à organização dos trabalhadores e à ação dos partidos antagônicos à ordem. A mídia é composta por grandes grupos privados e quase monopolista. O capitalismo brasileiro é plenamente monopolista, desenvolvido e integrado internacionalmente e, por estas razões, não há base social para qualquer arranjo socialdemocrata ou nacional-libertador que possa resolver os problemas da maioria da população e garantir justiça social. Há, no Brasil, uma elevadíssima concentração da renda, altos índices de desemprego, de pobreza e desesperança. O fato de que 50% da população brasileira não tem acesso ao saneamento básico é uma clara demonstração de suas contradições.

Como resultado das políticas liberais das duas últimas décadas, as áreas sociais, como a previdência, a saúde, a moradia e outras foram destruídas ou precarizadas. No entanto, houve algum crescimento econômico nos últimos anos, com uma redução dos níveis de miséria e uma relativa expansão do mercado interno, sob forte incentivo de uma política que conjugou renúncia fiscal com o endividamento pessoal/familiar junto ao sistema financeiro. Mas a desigualdade aumentou, e, como inicialmente afirmamos, a concentração de renda no Brasil continua sendo uma das mais perversas do mundo.

O PCB participou das eleições deste ano com candidatos próprios, tendo feito, entretanto, esforços para constituir uma frente de esquerda com as demais forças políticas do campo socialista e revolucionário, com o objetivo de demarcar o campo anticapitalista e antiimperialista e contribuir, na esfera eleitoral, para a formação de uma frente mais ampla, com partidos e movimentos sociais, voltada para a construção da Revolução Socialista no Brasil. Os partidos desse campo receberam poucos votos. Para este resultado contribuíram a escala reduzida desses partidos, a polarização das eleições entre os dois blocos da ordem que foram ao segundo turno, o caráter excludente das leis eleitorais, o boicote da grande mídia aos partidos não reformistas e, principalmente, a hegemonia burguesa, que segue dominante, no Brasil, reforçada pelo carisma pessoal e pelas políticas compensatórias e populistas empreendidas pelo presidente Lula, ao longo de 8 anos. Entretanto, deixamos raízes, conquistamos reconhecimento e respeito dos trabalhadores e saímos fortalecidos politicamente.

A vitória de Dilma Roussef, do PT, nas últimas eleições representa a continuidade do modelo econômico e da base de sustentação política do Governo Lula. E pelo que vem sendo anunciado, o modelo econômico seguirá com os preceitos liberais, mantendo o câmbio livre, a economia aberta, a formação e o fortalecimento de grandes grupos econômicos brasileiros associados ao capital internacional. A economia se caracteriza pela elevada participação das exportações de commodities agrícolas e minérios e mantém uma relação de dependência em relação ao fluxo de capitais externos atraídos pelas bolsas de valores e pelos títulos públicos, principalmente devido às altas taxas de juros praticadas. Há, também, um significativo fluxo de investimentos estrangeiros diretos, especialmente nas áreas petrolífera e de bens de consumo duráveis, mas a indústria, mesmo com uma base sólida em todos os segmentos e alguns nichos de alta competitividade internacional, vem perdendo terreno para bens importados, dada a valorização do Real.

A base de sustentação de Dilma é policlassista, mantendo os moldes do apoio a Lula, com grandes banqueiros, grandes grupos industriais, grandes exportadores de produtos agrícolas, partes das camadas médias e dos trabalhadores de baixa renda, e, fundamentalmente, a população que vive na linha da miséria, mantida viva com os programas oficiais de combate à fome. Lula diminuiu o ritmo das privatizações que caracterizou o governo anterior, neoliberal, usando, no entanto, novas formas de privatizar, como as parcerias público-privadas, concessões de estradas para a exploração privada, ajuda a bancos e criação de “Organizações Sociais”.

No campo político, a aliança partidária liderada por Dilma inclui legendas conservadores como o PMDB, que sempre compõe com o campo da situação, o PP, de centro-direita, e outros do mesmo campo, além de lideranças conservadoras importantes, algumas das quais integrantes dos governos militares, além do ex-presidente Fernando Collor, cujo mandato terminou com o seu impeachment, por comprovada corrupção. Compõem também este bloco alguns partidos com origem de esquerda. Em seu programa, Dilma acenou com a continuidade da política social de Lula – centrada na distribuição de bolsas para a população de renda muito baixa, uma presença maior do Estado nas áreas petrolífera e bancária e a manutenção da política externa mais independente de Lula, voltada também para a defesa dos interesses das grandes empresas brasileiras no exterior, como no caso das construtoras.

O adversário derrotado no segundo turno, José Serra, do PSDB, representou os segmentos da burguesia brasileira mais à direita, mais ligados aos interesses dos EUA, com o apoio, inclusive, de grupos oriundos dos governos militares (1964 – 1985). Na campanha, Serra aproximou-se de grupos religiosos ultraconservadores, trazendo para o debate temas como a proibição do aborto e da união civil entre homossexuais. Por este conjunto de razões, o PCB indicou o voto crítico em Dilma, declarando-se, de antemão, em oposição a seu governo.

No campo das lutas sociais, ainda que atuando sob hegemonia burguesa e sofrendo ainda as conseqüências, em sua organização, do desemprego e das políticas de precarização das relações de trabalho das duas últimas décadas e sobretudo da cooptação, vêm ressurgindo o movimento sindical e as lutas populares. Novas entidades intersindicais vêm se formando e diversos movimentos sociais vêm retomando o seu lugar na cena política, com o retorno de greves e manifestações diversas. Nosso partido vem participando dessa retomada e se empenhando para elevar o patamar de enfrentamento da luta de classes.

Diante desse quadro, o PCB propõe a construção de uma frente anticapitalista e antiimperialista, que possa fazer frente às dificuldades de organização dos trabalhadores, superar a hegemonia burguesa e levar adiante o processo revolucionário no Brasil e no mundo.

Finalmente, dado o agravamento da crise do capitalismo e do conseqüente aumento da temperatura da luta de classes, entendemos que já é hora desses importantes encontros mundiais de partidos comunistas e operários darem um passo à frente na articulação do MCI, no que se refere à informação, aos debates e ao reforço do internacionalismo proletário.

Muito obrigado! Viva o MCI! Viva o Socialismo !!!

COMITÊ CENTRAL DO PCB